O Presidente pediu desculpas?
Todos os jornais estão dizendo que o Presidente Lula pediu desculpas ao povo brasileiro, no discurso de ontem. Uns poucos comentadores acham que não. Creio que esses poucos tem razão. Isso me fez lembrar um clássico da filosofia contemporânea, John Austin(1911-60) que escreveu um artigo chamado "Em favor das desculpas" (A plea for excuses).
Austin escreveu e publicou pouco. Seus escritos foram reunidos em um pequeno livro, Philosophical Papers, que contém doze textos escritos por ele. O outro texto conhecido dele, Como fazer coisas com palavras foi editado por amigos a partir das notas que deixou.
Austin tem um lugar garantido na história da filosofia porque foi o primeiro filósofo, em 2.000 anos, que se deu conta de uma certa falha em nossa maneira de pensar as ações humanas; a falha está em não se perceber que fazemos coisas com palavras, em um sentido forte. Toda a área de estudos sobre os performativos, na filosofia e na lingüística contemporânea, foi descortinada por ele.
Eu me lembrei de Austin, dizia, porque todo mundo está dizendo que Lula pediu desculpas ao povo brasileiro no fraco discurso de ontem. O discurso foi fraco em muitos sentidos, até na estudada e falsa calma com que foi proferido. O aspone que escreveu o texto escolheu uma forma indireta para apresentar as desculpas que, ao fim e ao cabo, não caracteriza o pedido de desculpas.
Trata-se do seguinte: é preciso distinguir, neste caso, o proferimento declarativo do proferimento performativo. No declarativo, por assim dizer, apresentamos um estado de coisas. Se alguém diz: "Temos que comprar uma cafeteira nova", você se sente autorizado a concluir o quê? Que o fulano está assumindo um compromisso, expressando um desejo, manifestando sua tristeza diante de sua própria preguiça em mandar arrumar a que estragou? Digamos que o fulano está assumindo um compromisso. O que se segue? Que ele vai cumprir? E quando? Quando o salário permitir, quando sair o empréstimo do Marcos Valério?
A frase do Presidente Lula foi: "Eu não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas. O governo, onde errou, tem de pedir desculpas."
Repare: a primeira frase é um primor de dupla ambiguidade. Diga qual é o tema da frase, o ter vergonha ou a necessidade de pedir desculpas? A segunda frase é menos ambígua: ela diz que o PT tem de pedir desculpas. A frase, portanto, se dirige ao PT, convida o PT a pedir desculpas. Da mesma forma, a segunda.
Donde se conclui que a primeira também: o presidente se dirige aos seus ministros, ele se inclui e conclui: "Nós temos de pedir desculpas".
Pois então que peçam.
Repare: você pisa no pé de alguém, sem querer, no Expresso Camobi. Aí você olha para o sujeito e diz assim: "Pisei no seu pé. Eu tenho de pedir desculpas." Você não acha que o sujeito vai ficar olhando e esperando, "pois então peça, vivente!".
Aí você olha no olho do gauchinho e diz:
"Me desculpa!"
Tá feito.
Lula não fez isso, infelizmente. Para fazer coisas com palavras, como disse Austin, existem umas regrinhas não-explícitas, mas que todos nós conhecemos.
4 comentários:
Muito bem lembrado!
Concordo que não expressa um pedido de desculpas simplesmente dizer "tem de pedir desculpas", expressa sim um desejo que ainda não foi realizado.
Ronai fez uma análise primorosa do pronunciamento de nosso presidente utilizando a Teoria dos Atos de Fala e o jornalista Alexandre Garcia, em http://bomdiabrasil.globo.com/Jornalismo/BDBR/0,,AA1014533-3685,00.html, complementa a análise de Ronai mostrando que, caso tivesse "feito a coisa certa com as palavras" (entenda-se "pedido desculpas"), haveria uma inconsistência entre as partes escrita e improvisada do discurso do presidente Lula.
Frank, tens toda a razão. Visitei a página do Alexandre e concordo contigo. Depois me lembrei que o Presidente deixa de olhar para o papel e passa a improvisar, na hora das "desculpas". De fato, ficaria criado uma contradição no discurso.
Bom material para aulas, bem prático. Obrigado mais uma vez.
Ops: quando ao "primorosa", deixa para lá, é um exagero de tua proverbial bondade.
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