Intenção e gesto: os fins justificam os meios? (1995)
"Na concepção da esquerda tradicional sempre imperou a máxima de que os fins justificam os meios."
A frase é de José Genoino, publicada em 1995 (ver postagem anterior).
Essa convicção não é privilégio da esquerda tradicional. Desde o clássico trabalho de Max Weber, "A Política como Vocação", (1919) não podemos mais pensar que os paradoxos éticos que envolvem a relação entre meios e fins na política sejam privilégios desta ou daquela tendência ou crença política. O que eu quero discutir é se pode haver alguma relação peculiar entre o desejo de ter sempre razão, em política, e as posições conservadoras, de esquerda ou direita. Essa discussão weberiana sobre o que ele designa como o vício clerical de querer ter sempre razão é uma das passagens mais relevantes do ensaio dele. Em que consiste este vício e de que forma se relaciona com nosso tema?
Weber dá o exemplo do homem que, tendo deixado de amar uma mulher para amar outra, sente-se obrigado a justificar-se diante de si mesmo, dizendo que a primeira mulher não era digna de seu amor, ou que o decepcionou ou qualquer outra razão parecida. Ao invés de simplesmente admitir para si (e para ela) que não gosta mais dela, esse bom homem procura criar uma legitimidade em virtude da qual ele pretende ter razão para fazer a troca de mulheres. Como se não bastasse deixar a antiga mulher, esta ainda é considerada culpada pela separação. Essa mesma alma, quando compete com outro homem pelo amor de uma mulher e o vence, fica convencido do valor menor do rival, pois afinal foi derrotado! Esta alma boa, na política, quando ganha, é porque tem razão, e quando perde, é porque... tem razão! A ética, para essa boa alma, é apenas um meio de se convencer que a razão está sempre com ela. Ela nunca perderá um embate, seja uma guerra, uma eleição ou uma greve. Santificado pelos fins que persegue, a alma boa sacrifica os valores do cavalheirismo para com nossas mulheres, os valores da objetividade e da dignidade.
Até aqui com a descrição do vício, seguindo Max Weber. Mas o que isso tem a ver com nossa discussão?
Creio que podemos acompanhar um pouco mais Max Weber, na lembrança de que quando acreditamos que o trabalho político consiste na imposição da justiça absoluta na terra por meio do poder, precisamos lembrar do que acompanha isso: um partido, centenas ou milhares de partidários ou militantes, que não apenas precisam de recompensas materiais, mas também de recompensas morais de “satisfação do ressentimento e da paixão, falsamente ética, de ter razão”. (Weber, p. 133) Uns tantos militantes conservarão por muito tempo a fé na causa e na pessoa dos grandes líderes, mas o dia a dia da vida aos poucos cobrará seu preço: afinal, é humanamente impossível fazer política sem conversarmos com as potências do diabo e quanto mais conversações com o diabo, mais buscaremos a santificação pelos fins, mais buscaremos a absolvição de nossas ações concretas por meio da pureza das intenções professadas.
Antes de ser um privilégio da esquerda tradicional, a idéia de que os fins justificam os meios pode representar uma tentação para todo tipo de gente, em muitos contextos políticos. Por exemplo, o Brasil, colocado sob a seguinte descrição: um país com enormes injustiças e desigualdades sociais (sob a forma da distribuição de renda e de terra); com enormes massas de miseráveis e excluídos de toda a sorte; com uma pequena classe média, por vezes afluente, por vezes estacionada; com uma elite menor ainda, no mais das vezes insensível ao quadro de exclusão social; com uma economia complexa; com um parque industrial vigoroso; com um sistema educacional e científico deficitário numa das pontas mas sofisticadíssimo noutra. Pensemos agora num certo tipo de alma, pertencente a essa pequena classe média, e que pelos mais diversos caminhos da vida tornou-se solidária para com a sorte dessas grandes massas de excluídos. Um belo dia essa alma conclui que o estado de miséria e exploração é produzido pelos homens e que as coisas não precisariam forçosamente ser assim como são. É preciso, pois fazer algo para mudar esse estado de coisas.
(Escrevi isso em 1995! Segue)
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