quinta-feira, março 13

Metáforas



"O desenvolvimento da consciência nos seres humanos está inseparavelmente ligado ao uso de metáforas. Metáforas não são meramente decorações periféricas ou mesmo modelos úteis, elas são formas fundamentais da consciência que temos sobre nossa condição: metáforas de espaço, metáforas de movimento, metáforas de visão."

A frase é de Iris Murdoch, na abertura do ensaio "A soberania do bom sobre outros conceitos".

Lembrei dela ao ler hoje o jornal do sindicato da Ufesm. O editorial tem como título "O câncer que destrói a universidade".
Nele, encontramos as seguintes expressões qualificativas para as fundações universitárias: "câncer que tem consumido a universidade pública", "um tumor a sugar recursos", são "tumores" que é "preciso ter a coragem de extirpar".
O sindicato escolheu metáforas de doença para pensar nossa crise.
Dentre as doenças, escolheu o câncer.
Quero fazer duas observações.
Em primeiro lugar, fiquei surprêso com a escolha de metáforas ligadas à biologia para pensar problemas sociais e humanos. Desde a críticas a conceitos como "país subdesenvolvido", nos anos setenta, achei que o povo havia abandonado esse tipo de matriz retórica; conceitos como "sub-desenvolvimento" ou "doença" supõem, com razão, a tipificação de estados normais de desenvolvimento e saúde. Ora, pensar instituições sociais com essa matriz só pode dar chabu, e isso faz décadas que as ciências sociais se deram por conta. Assim, o editorial descambou para o lado moral.
Em segundo lugar, se eu tivesse câncer, ficaria puto da cara com o sindicato. Ninguém escolhe ter câncer. Ninguém é condenado moralmente por ter câncer. Ninguém é punido por ter câncer. O câncer não é um "mal terrível", como diz o sindicato. É uma doença que ninguém quer ter, mas não há um oposto para ela, um "bem maravilhoso". Assim, o editorial conseguiu ser politicamente incorreto.
Mais do que puto da cara, fiquei chateado.

2 comentários:

Gisele Secco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gisele Secco disse...

Fui buscar ali na minha estante um livrinho que reúne dois ensaios de Susan Sontag sobre metáforas de doenças (Doença como metáfora e AIDS e suas metáforas, pela Companhia de Bolso, 2007), pra trazer esse trecho que complementa o que dizes:

“Apresentar um fenômeno como se fosse um câncer representa uma incitação à violência. O uso do câncer no discurso político estimula o fatalismo e ‘justifica’ medidas severas – bem como reforça com veemência a noção de que a doença é necessariamente fatal. Embora as metáforas de doença jamais sejam inocentes, seria possível afirmar que a metáfora do câncer é um caso pior: implicitamente genocida. Nenhum ponto de vista político específico tem o monopólio dessa metáfora. Trotski chamava o stalinismo de o câncer do marxismo; na China, no ano passado [que, aqui é 1976]o Bando dos Quatro tornou-se, entre outras coisas, ‘o câncer da China’. John Dean assim explicou Watergate para Nixon: ‘Temos um câncer interno, perto da presidência, e está crescendo’. A metáfora recorrente nas polêmicas dos árabes – ouvidas por israelenses no rádio todos os dias, ao longo dos últimos vinte anos – é que Israel é um ‘câncer no coração do mundo árabe’ ou ‘câncer do Oriente Médio’, e um oficial que, junto com as forças direitistas libanesas, participava do sítio ao campo de refugiados palestinos de Tal Zaatar, em agosto de 1976, chamou o campo de ‘um câncer no corpo do Líbano’. Para quem deseja suscitar a indignação, parece difícil resistir à metáfora do câncer. Assim, Neal Ascherson escreveu em 1969 que o caso Slanksy ‘era – é – um enorme câncer no corpo da nação e do Estado da Tchecoslováquia’; Simon Leys, em Sobras chinesas (Chinese shadows), fala do câncer maoísta que está corroendo a face da China’; D. H. Lawrence chamou a masturbação de ‘o mais profundo e perigoso câncer da nossa civilização’; e eu certa vez escrevi, no calor do desespero com a guerra dos Estados Unidos contra o Vietnã, que ‘a raça branca é o câncer da história humana’. (...) As modernas metáforas de doença são todas indelicadas. As pessoas que sofrem da doença real em nada se beneficiam ao ouvir o nome de sua doença constantemente mencionado como a síntese do mal. Só no sentido mais restrito um fato ou problema histórico se assemelha a uma doença. E a metáfora do câncer é particularmente grosseira. Sempre representa um estímulo a simplificar algo complexo e um convite ao farisaísmo, quando não um fanatismo”. (p. 72-3)