Argumentos para o debate. Com a palavra, Denise Frossard
Os danos da proibição de armas
Denise Frossard*
O bom senso, sob o fogo cerrado da proposta de proibição do comércio legal de armas, pode ser mais uma das vítimas da ingenuidade ou violência branca da demagogia. O que se pretende com a proibição? Reduzir a criminalidade é a resposta, tão imediata quanto impensada, que nos vem à cabeça. Mas é uma resposta equivocada. A proibição do comércio legal de armas não fará recuar nem um milímetro a ousadia do crime (organizado), não baixará a taxa de delinqüência das ruas nem mesmo trará o conforto de diminuir a sensação de insegurança que, hoje, atinge em graus variados a sociedade brasileira. A proibição do comércio legal de armas, como o simples aumento de penas, a mudança do fardamento da polícia, tantas outras medidas (anunciadas ou já implementadas), tem sobre a criminalidade o mesmo efeito de um arco-íris no céu: uma ilusão bonita aos nossos olhos.
No caso da proibição do comércio de armas, a falsa sensação produzirá, no entanto, um efeito danoso: retirará do Estado a possibilidade de controle (ainda que frágil, como agora) e dificultará ainda mais a investigação de crimes praticados com esse recurso.
Proibida a comercialização, o Estado não terá mais instrumentos para o controle da circulação de armas. Como a sensação de insegurança persistirá, porque as verdadeiras causas da criminalidade (corrupção e impunidade) não são resolvidas em razão das deficiências do Estado, o mercado inteiro de armas de fogo irá para a clandestinidade.
As provas desse argumento são muitas. Uma delas está no documento "Fiscalização de Armas de Fogo e Produtos Correlatos", publicado pela imprensa, elaborado pelo coronel de infantaria Diógenes Dantas Filho, que, em conjunto com o Ministério Público Militar Federal, articulou uma ação policial militar para apreensão de armas clandestinas no Rio de Janeiro. O trabalho mapeia as rotas utilizadas pelo tráfico de armas e confirma a existência, em circulação, no Brasil, de 20 milhões de armamentos sem registro, em contraposição a 2 milhões de armas registradas.
É uma absurda ingenuidade de uns (e razões suspeitas de outros) imaginar que, diante da proibição do comércio legal, ninguém mais comprará ou deixará de portar armas. O mercado não vai estancar simplesmente porque o Estado proibiu a comercialização. Historicamente não tem sido assim.
Quem não se lembra da Lei Seca, nos EUA, ou da reserva de mercado de informática, no Brasil? Nos dois casos, e em muitos outros que a experiência de proibições comerciais mundo afora construiu, cresceu o mercado clandestino e o contrabando.Esse é o terreno fértil para aumentar a corrupção.
A medida certa está no controle da fabricação e do porte de armas de fogo, e não na proibição da comercialização. Nesse ponto, é bom retirar do debate a idéia equivocada de que os que são contra a mera proibição estão no pólo oposto da argumentação, propondo "às armas, cidadãos". Não é assim. Acredito na eficiência da regulamentação e no controle rigoroso da fabricação, do porte e da importação de armas. Acredito na responsabilização direta e penal de todo aquele que, mesmo não portando armas, estimule o porte ilegal. Venho defendendo publicamente esses pontos de vista desde o começo dos anos 90.
O caminho do controle foi tomado em fevereiro de 1997, com a edição da lei 9.437, que estabeleceu condições para o registro e o porte de armas de fogo e, mais relevante, configurou como crime possuir, deter, portar, fabricar,
adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder (mesmo que gratuitamente), emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Até 1997, o porte ilegal de armas era uma simples contravenção penal. A partir de então, com a lei 9.437, passou a sercrime, com pena de prisão. Recentemente, o Senado melhorou ainda mais a lei, aprovando um projeto que, entre outras medidas, torna o porte ilegal de armas um crime inafiançável. A proposta do Senado será submetida à Câmara, onde terá o meu apoio.
Apesar de não produzir resultados efetivos para o esforço de redução da criminalidade, que, comprovadamente, tem causas mais graves, a proposta para proibição do comércio legal de armas acabará sendo apresentada à população como um milagroso remédio. E nisto está o segundo, e talvez mais importante, equívoco. Sendo aprovada a proposta e em nada resultando no que concerne à necessidade de redução da criminalidade, veremos aumentar a incredulidade da
população com as medidas que venham do Estado. Com isso, continuaremos perdendo um importante aliado na luta contra o crime: a confiança do cidadão no Estado.
DENISE FROSSARD é Juíza de direito aposentada, fundadora da Transparência Brasil e deputada federal pelo PSDB-RJ.
(Agradeço ao Luis Valério o envio do texto como contribuição para essas conversas sobre os argumentos e sobre o referendo)
Um comentário:
O núcleo do texto parece estar nessa afirmação preditiva: O Estado perderá o controle da circulação de armas. A previsão é feita com base na crença que continuará o comércio de armas, clandestinamente, pois a população, insegura quanto à capacidade do Estado de protegê-la, não deixará de se armar.
E a prova seria o fato que historicamente as proibições desse tipo se mostram inócuas diante da capacidade de contrabando, etc.
Outro ponto do artigo é também de natureza empírico-preditiva: não haverá diminuição da bandidagem armada.
Os dois pontos orientam-se pela aposta no cenário futuro imediato. Aliás, parece ser esse o foco de quase todos os debates: o que vai acontecer no outro dia da promulgação da lei? E a resposta que circula na rede é quase sempre é esta: a bandidagem vai agir com mais facilidade, na certeza de que ninguém tem arma em casa.
O primeiro ponto dela é importante, sem dúvida. Ela estima em 22 milhões de armas circulantes, sendo que apenas 2 milhões são registradas. Como são essas 20 milhões clandestinas? Quantas delas pertencem aos "bandidos" e quantas aos "homens de bem"? Alguém faz idéia? Esse seria um ponto a discutir, o fato que a classe média brasileira faz muito tempo vem se armando clandestinamente, com armas contrabandeadas porque já não se satisfaz mais com o stopping power de um 38. E o tresoitão continua sendo o berro básico "bandidagem", que para isso ele serve.
Mas se existem hoje 20 milhões de armas clandestinas, porque ela diz que o Estado perderá... Ele já perdeu faz muito tempo, não?
Vou reler o artigo.
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