quarta-feira, fevereiro 8

Santerias

Faz alguns anos entrei num gabinete de uma assessora de um assessor, etc, no terceiro andar da Reitoria, para tratar de um assunto graduado qualquer. A senhora me recebeu muito bem, com todas as alegrias do cargo nem tão pesado assim. Minha atenção na conversa, no entanto, logo foi desviada por uma interminável coleção de imagens religiosas que cercava a mesa peninsular da senhora: santos e santas, anjos e anjinhos, gnomos, fadas, enfim, qualquer fauna capaz de benção morava ao redor das mesas, disputando espaço com carimbos, bandejas de a responder e recebida, potes de canetas e de clipes. Ela parecia incapaz de imaginar que alguém pudesse sentir-se incomodado com tanto despacho na mesa. Na hora, me lembrei que no meu centro de ensino, na sala principal de reuniões, havia um crucifixo pendurado na parede, dominando todo o espaço, abençoando, em primeiro lugar, o presidente das sessões. Lembrei também que um colega de Departamento me acompanhou na queixa (bem humorada!) contra aquela intromissão da fé privada no espaço público. Chegamos a ponderar junto ao pendurador que ele não deveria fazer aquilo, colocar sua fé pessoal no espaço republicano da sala de reuniões. O dirigente, com humor aquoso, respondeu que ele era o diretor, e que o crucifixo era dele, colocava onde queria. O dirigente se foi, faz algum tempo, e o crucifixo foi ficando. Desde ontem, ao final da tarde, ele está à disposição do ex-dirigente.
Não pude fazer quase nada nesse meu nano mandato. Baixei o crucifixo da parede, por exemplo. É muito pouco. Eu gostaria de ser reitor, um dia, para baixar uma diretriz administrativa - talvez várias - que limpasse também essas mesas de santerias.

10 comentários:

Anônimo disse...

Bravo Ronái, como vais? Que ocupação maravilhosa terias neste dia de reitor a caçar duendes e fadas, crucifixos e budinhas risonhos, estrelas e crescentes. Todavia penso que não verias o sol se pôr sem uma revolução - um tanto menor que o fenômeno que varre os países de grande concentração muçulmana, mas igualmente fatal - aí mesmo pelos corredores do prédio novo do ccsh.
Acho que ainda estamos sob a pertubação do milênio. Talvez lá pelo 2150 ou 2387 alguém se importe em entender como tantos foram tão crentes em uma época de tanta tecnologia e informação como a nossa. Entender o ser humano não é mesmo uma tarefa simples.
Abraços meu caro.

Anônimo disse...

Querido Ronai,

Você sabia que canetas-azul-celeste-com-tampas-cor-de-rosa são consideradas amuletos seríssimos, poderosos, embuídos de bênçãos (ponto de interrogação) De acordo com a enciclopédia wikipedia.org, esta é a crença do povoado de Tana Toraja, que vive no sudoeste da ilha de Sulawesi na Indonésia. Um deles, que fez mestrado em Jakarta, está fazendo mestrado no curdo de letras do CCSH. Como reitor, sua medida abrangeria a extinção de tais canetas (ponto de interrogação)

Anônimo disse...

Correção no comentário: um dos habitantes de Tana Toraja, que fez mestrado em Jakarta, está fazendo um intercâmbio no curso de letras do CCSH da UFSM. Ele disse que trouxe uma série desses amuletos e só distribuirá para alguns seres especiais que encontrar no Campus.

Ronai Rocha disse...

Lanço minha candidatura a um "ser especial"; como faço para encontrar o habitante de Tana Toraja? Vou preparando: "Selamat pagui!" (Ronai)

Ronai Rocha disse...

E como faço para encontrar o habitante de Tana Toraja? Vou preparando: "Selamat pagui!"

Anônimo disse...

"Como tantos foram tão crentes (podemos interpor aqui "a despeito de") em uma época de tanta tecnologia e informação como a nossa."
"A despeito de", Aguinaldo, é assim que devemos ler seu pensamento? Como se a idolatria a toda essa parafernália tecnológica que está aí não fosse também uma espécie de credo às avessas, uma espécie de obsediação a que está submetido o homem.
Não vejo menos risco ou cisco (no olho, na mesa, na vida, na nossa biografia, em qualquer lugar) em adorar, como adoramos, pcs, notebooks, palms, games, telas, e nossos próprios textos, nossas “notas” ou o olhar sobranceiro mas de lisonja de um professor para nós, do que adorar os santinhos e amuletos.
Deixem todos que tem fé, superstição e religião E SÃO INCAPAZES DE FAZER MAL A ALGUÉM. Vocês querem promover uma espécie de profilaxia que não me cheira bem.
Sentir-me “incomodado”, ao adentrar na sala daquela senhora e ver sobre a sua mesa não menos do que cinco livros do “imortal” Paulo Coelho, e no canto oposto da mesma mesa, “Marimbondos de Fogo” de outro “imortalíssimo”, isto seria o suficiente para eu tomar a senhora por uma “pobre” leitora. Ou seja, senhores: irá me incomodar o que quer que eu queira que me incomode.
Por que devo considerar respeitosamente porta-retratos, em cima daquela mesa, com fotos dos amados dela (seus afetos, suas paixões, que podem até ser “amor em engano”), e posso, também, aceitar pedras e cristais cromoterápicos, mas devo repudiar imagens religiosas? Caro Aguinaldo e Prof. Ronai, espero que em 2185 não sejamos lembrados pelo “brutal” preconceito que nutrimos TODOS, sempre, com a crença um do outro.
Sei que o argumento número 1 (e sobremaneira eficaz) de vocês é: “mas estamos falando de um local, uma instituição pública, e tão-somente por isso queremos vedar esse tipo de manifestação (ou privilégio, se assim queira entender).” A discussão está aberta. E o mote é “público versus privado”. Talvez devêssemos começar pelo fato de que não é ninguém mais senão A Senhora Ordem Social a causadora de toda ruína do maltrapilho Ser Individual. Abraço.

Anônimo disse...

Uma réplica a mim mesmo.
Não tenho dúvida ou pelo menos tenho esperança, que a boa contribuição que eu possa dar vem agora: uma auto-análise do meu comentário anterior. O passo que dá equilíbrio. Depois do passo que foi à frente, agora, o que vai para trás.
Primeiro, meu comentário não se absteve de presunção; segundo: não obstante meus interlocutores terem usado a pessoa “eu”, portanto, não evitando se misturar e confundir com a “massa densa” do assunto (crenças e religiosidade), eu não deveria discutir com “as suas pessoas”, mas com o assunto. Por quê? Porque todos nós sempre experimentamos situações tantas e tais que, em exceção, até podem ser alguma coisa nossa, que pertençam de fato a nós. Eu mesmo não acredito em uma exceção a isto. As situações agregaram-se a nós, ao longo da nossa história. Elas são entes públicos e não individuais e singulares.
Terceiro: quase nada é mais desprezível que a deselegância (para usar um termo em voga); e, ao meu ver, pratiquei-a; quarto: não há mais ar, nem camada de ozônio para sectarismos (o mundo está aí para provar que estou mentindo); quinto: desejo, sobre todas as coisas, defender meu ponto de vista, mas sem resvalar nos quatro pontos mencionados. Não há muito mais a dizer a não ser algumas palavras de Jacques Rancière do seu O mestre ignorante, que são muito oportunas à [nossa] discussão.

Anônimo disse...

Continuação da réplica a mim mesmo.
“Não há linguagem da razão. Há somente um controle da razão sobre a intenção de falar. A linguagem poética que se conhece como tal não contradiz a razão. Ao contrário, ele (Jacotot) recomenda a cada sujeito falante não tomar o relato de suas aventuras de espírito pela voz da verdade. Cada sujeito falante é o poeta de si próprio e das coisas. A perversão se introduz quando esse poema se dá por outra coisa [ digo eu: quem sabe as situações?] além do poema, quando pretende se impor como verdade e forçar a ação. A retórica é uma poesia invertida. Isso quer dizer também que, em sociedade [as situações são unicamente sociais], não se sai da ficção. A metáfora é solidária com a demissão original da vontade. O corpo político é uma ficção, mas uma ficção não é uma expressão figurada, à qual se poderá opor uma definição exata do conjunto social. Há, de fato, uma lógica [a lógica das situações] dos corpos à qual ninguém pode, como sujeito político, se subtrair. O homem pode ser dotado de razão, o cidadão não pode sê-lo. Não há retórica razoável, não há discurso político razoável (p. 121-122).”
Premissas deste trecho:
1) a razão não tem linguagem
2) a razão exerce um controle sobre o “falar” e “agir”
3) se a linguagem poética “não contradiz a razão”, ela em si mesma, por só representar as coisas, exerce algum controle sobre o “pensar”, “agir” e “falar”. Mas ela não contém verdade alguma.
4) o sujeito falante que é poeta, através da razão, exerce “controles de vontades”, mas por esse controle não ser linguagem, assim como as coisas mesmas, há uma brutalidade ao tentarmos imaginar que seja verdade aquilo que brota da relação entre o “sujeito-poema-força-e-vontade” e as coisas mesmas.
5) a retórica é uma poesia invertida porque é uma linguagem. Mas a retórica não é o poema-sujeito e nem tampouco as coisas mesmas. Portanto, a retórica é tudo, menos verdade.
6) a metáfora, porque é linguagem, depõe contra a vontade (que só se encontra no sujeito-poema-sem linguagem).

Anônimo disse...

Para finalizar a réplica a mim mesmo.
Há um poema em nós que é silêncio (talvez o silêncio seja uma das premissas da razão – a razão não fala: ela sabe). Portanto, um poema que não é coisa e não é situação. Um poema que não transita na ordem do dia, na ordem social. Seus códigos são não convencionados, absolutamente diferentes dos códigos sociais. Por isso, lhes falei que embora a pessoa “eu” estivesse ali puxando o papo das “santerias”, meu comentário não podia investir contra o narrador, mas na direção da “massa densa”, do problema, do “causo” em questão.
É bem verdade que, como diz Rancière, a razão exerce seu controle sobre a intenção de falar. Mas nossas intenções de falar são quase sempre presas fáceis do ardil da “massa densa” dos assuntos. Não há menos ingenuidade do que supremacia na razão, quando toca dela se virar com o mundano. Certamente, porque falar é sempre ingênuo ou nocivo; supremo é saber e fazer.
Tomemos uma mesma situação de fé e crença em dois momentos distintos ao mesmo poema (leia-se alma, espírito ou essência do ser – Ainda: poema como faculdade de agir e reagir do ser humano a coisas se abstraindo da ficção social).
Situação 1: a experiência descrita em “Santerias”: desconforto lógico do cruzamento de opiniões, crenças, e a não garantia de uma decisão límpida originária dos próprios fatos.
Situação 2: o indivíduo não possui nenhum familiar. Nunca teve filhos. A única pessoa com quem vive é a sua esposa. Esta, agora, está numa CTI. Suas chances de vida são, segundo os médicos, mínimas. Ele está só e parece sentir a vertigem de um mundo inóspito que ainda gira. Só o tempo ainda existe de fato para ele. Afinal, é dele que necessita para saber o que lhe será.
Nunca creu em nada, em toda a sua vida. Hora antes de receber o resultado da derradeira cirurgia, ele caminhava, absorto, no corredor do hospital. Para nada que via, percebeu, porém, a estátua em tamanho quase natural do Cristo. Este lhe estendia as mãos e o olhar na direção particular do seu ser-se quase nada. Petrificado diante da imagem, sem a clareza do pensamento e a noção de tempo, ele apenas intuía algo. Uma espécie de osmose de um algo-substância.
Sua vida se desmanchara como o golpe de um carretel de filme que estourasse para fora da projetora, e as imagens nele impressas começassem a se soltar e se dispersar no espaço.
Retornando de si, no corredor, sentiu-se estranho. Algo lhe permeava o corpo de uma dormência nunca sentida. Sentia-se ninguém, porque não sabia mais de si mesmo. Quanto mais olhava a imagem mais se percebia esquecendo de si mesmo. Confuso e constrangido, lembrou que jamais em toda sua vida parara um minuto sequer diante de qualquer símbolo sacro. Imerso na experiência, admitiu a evidência máxima da experiência. Inegável, inapagável, indiscutível, imprescindível. A experiência lhe outorgava sentir e ser o que jamais fora.
Adeus.

Anônimo disse...

São 22.12. Tenho que tomar algumas providências práticas. Estou indo para o meio do mato, literalmente. Volto daqui uma semana, espero, encharcado de paisagem. Tomara que ajude nessa boa conversa. Obrigado pela voz.