A transversalidade pedestre
Como dizia Dom Bressan ontem, em conversa particular, quase sempre que a gente ouve alguém falar em interdisciplinariedade ou tranversalidade no ensino, a vontade que a gente tem é de ir saindo de fininho, para escapar dos lugares comuns e do vazio de idéias.
Os corredores das escolas ilustram essa dificuldade; os projetos de inter ou transversalidade se resumem à enésima repetição de recortes de revistas sobre problemas de meio-ambiente, no mais das vezes, ou da importância da ética.
Se algo sobrar dessas questões do vestibular de Filosofia, eu espero que seja uma ponta de flecha indicando a possibilidade concreta de uma transversalidade pedestre; no horizonte estaria um projeto de currículo de Filosofia para o ensino médio que, entre outras variáveis (eu disse OUTRAS) consideraria certas relações internas e possíveis entre a Filosofia e as demais disciplinas e atividades do ensino médio.
A transversalidade pedestre se ocupa com conceitos que desempenham papel importante em muitas disciplinas particulares (a idéia de "taxionomia" é fundamental não apenas na Biologia, pois outras áreas do conhecimento humano fazem classificações), mas nenhuma disciplina em particular se ocupa com ela. O mesmo vale para "definição", "abstração", "infinito", significantes que transitam na cabeça dos guris e gurias, mas que ficam à deriva nas disciplinas particulares.
Eu insisto nessa idéia de "transversalidade pedestre" como a porta de entrada da tal da "contextualização". Muitos professores de Filosofia, quando ouvem falar em "contextualização" querem logo falar do Saddam ou da Cicarelli, e esquecem de contextualizar com o que o aluno estava estudando minutos antes, em Biologia ou Física.
8 comentários:
Caro Ronai
O tema é tão relevante quanto arrepiante. O caminho interdisciplinar (multi, pluri, trans etc.) deve ser trilhado com a devida parcimônia e com os pés bem assentados no chão. Um bom começo pode ser o de identificar e estabelecer pequenas conexões entre campos do conhecimento e a partir daí desenvolver as condições mínimas para proporcionar um "salto interdisciplinar".
Sem querer puxar brasa para o nosso assado, a revista Ciência & Ambiente persegue a multidisciplinaridade. Posso afiançar (17 anos depois) que não é coisa simples.
Um grande abraço
Ronai.
Estou praticamente um farrapo humano, não consigo pensar muito bem, mas quero dizer, ainda no meio do fervo, que até agora gostei das questões preparadas para o vestibular. De verdade. (O Andrei já disse, eu sei) Meus alunos... Alguns adoram, outros - os mais desatentos e menos inclinados à interpretação e articulação de conteúdos - não. É assim mesmo.
Nos vemos na semana que vem, no Seminário do CE? Espero que sim, que com calma temos muito pra falar. Um grande abraço exausto mas afetuoso.
Ronai,
aproveito esse espaço para solicitar sua opinião sobre a matéria publicada hoje no Diário de Santa Maria, intitulada "Sorteio de vagas?" (p. 4). O autor cita Rubem Alves em apoio à proposta de extinção do vestibular e, em seu lugar, a implantação de um "democrático" sorteio. Há pérolas, como as seguintes:
... doutores em literatura poderiam fracassar diante de uma prova de química ou física. Então perguntamos: por que nossos alunos têm de saber tudo? [Falso dilema]
... negros, brancos e pardos, bem como ricos e pobres, concorreriam em igualdade de condições. [Negros, brancos e pardos, ricos e pobres fazem provas diferentes? Essa, talvez, pudéssemos classificar como falsa causa]
...o vestibular só seleciona naqueles cursos em que há uma relação candidato/vaga muito alta, em que os candidatos "fracos" não obtêm sucesso. [Bem, isso é ou uma obviedade ou simplesmente falso, dependendo de como se interpreta "seleciona". Uma vez que o autor parece aproveitar-se dessa ambigüidade, incorre na falácia de mesmo nome]
...não tendo mais a garantia de que seus filhos ingressariam em um curso superior via vestibular, acabariam construindo grandes e bem equipadas universidades para os seus descendentes [Bela solução! Essa já não é uma questão de lógica]
Se o autor quis fazer um grande exercício de ironia, desculpo-me pela minha falta de sutileza. Porém, desconfio que outros leitores também são duros de cintura.
O autor do artigo do Diário foi, durante muitos anos, um assessor importante do vestibular da Ufesm. Assim, minha compreensão dos argumentos vai pela chave da ironia. Mas isso é um tipo de falácia... O Rubem Alves tem defendido essa idéia faz tempo, e o articulista amplifica os argumentos dele. Acho que uma das falsas premissas é essa afirmação que "os alunos tem de saber tudo" de química e física, etc. A seleção de alunos por sorteio é feita hoje no Colégio de Aplicação da Ufrgs e já foi cogitada aqui em Santa Maria, no Colégio Industrial. Acho que é uma boa idéia para o nível médio, tendo em vista a obrigatoriedade do nível. No caso do superior isso não se aplica.
A expansão do ensino público fundamental se fez às custas de sua qualidade, e isso até as pedras sabem. Um ingresso por sorteio nas universidades publicas seria uma manifestação de natureza política (talvez relevante sob alguns aspectos), com uma "diminuição de nível", como diz o articulista. Eu mesmo sou favorável a uma política de seleção baseada na valorização de avaliações como a do Enem.
Gisele, agüenta mais 24 horas... De fato, acho que devemos juntar todo o povo da Filosofia, professores de escolas, cursinhos, todo mundo, e começar a pensar para o próximo. Gracias pelos comentários.
Ronai,
agradecido pelo comentário. Acredito ser importante lembrar que muitos filósofos de porte tiveram, no passado, um papel importante na caracterização do que constitui uma univesidade. Talvez seja a hora dos filósofos voltarem a refletir sobre a instituição universidade.
Quanto à necessidade de uma reunião com todo o povo da filosofia, sem dúvida é necessária uma rediscussão sobre os conteúdos de filosofia no PEIES e no vestibular, mesmo porque houve uma melhoria substancial na oferta de material didático ao longo dos últimos três anos.
Sugestões de títulos? Eu gostaria de acrescentar, por exemplo, o Julian Baggini, "O Porco Filósofo", da Relume Dumará, 2006. E de retirar vários...
Adquiri recentemente o livro "Use a lógica: um guia para o pensamento eficaz" de D. Q. McInerny (BestSeller, 2006), que inclui, entre outras, uma discussão interessante sobre linguagem vaga e ambígua. Tem também a vantagem de praticamente não fazer uso de simbolização e, com isso, evita o agravamento da "Síndrome da Intolerância à Simbolização", tão freqüente nas humanidades.
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