segunda-feira, julho 30

Odisséia

Reconciliado com Penélope e tendo devastado os pretendentes, Odisseu vai ao encontro de seu velho pai, Laertes, e junto com ele liquida mais alguns desafetos. Assim termina a Odisséia, da qual continuo dizendo: Donaldo Schüler fez um belo trabalho! Aproveitei as longas horas de espera entre Congonhas e Guarulhos e terminei o terceiro volume - Ítaca - que contém as histórias de Odisseu de volta à sua terra, como se infiltra em sua própria casa e ali promove a chacina dos pretendentes à mão de sua dileta. O texto, vertido do grego por Donaldo Schuler, traz até algum regionalismo, como esse na página 237 do segundo volume: "Guascaços de água arrombam paredes, quebram barrotes, arrancam a quilha, que monta no dorso da onda afoita." Guasca, para quem não sabe, é uma tira de couro ou uma forma de chamar o gaúcho, guasca de fora, como se diz. Mas está no Houaiss. Outras vezes Schuler concede-se a liberdade de recriar o texto de uma forma radical, usando e abusando de xingamentos que farão os homeristas corar: "Com essas ameaças Iros tremia de cu na mão", na passagem em que Odisseu, disfarçado de mendigo em sua própria casa, é desafiado por outro mendigo, Iros, que vai sentir a força do braço do herói. Como essa, há uma boa dúzia.
Quem sabe depois do Harry Potter, que afinal, morreu, a gurizada começa a encarar o Odisseu varão astucioso?

sábado, julho 28

Tendências

1. Haverá, penso eu, uma pequena explosão na área de manuais e bibliografias auxiliares; mas o MEC parece ter firmado posição, no sentido de apoiar a elaboração, a cargo da Anpof, de um livro de referência, escrito por professores renomados para professores; o MEC, no caso da Filosofia, não vai indicar livro didático; poderá haver um refinamento das sugestões de conteudos, mas sem imposições de nenhum tipo, pois a realidade não comporta isso; por outro lado, o grupo dos que entendem o ensino de filosofia como "adquirir o instrumental crítico para atuar numa perpectiva transformadora" parece ser ainda muito forte, em especial em São Paulo, e estes estão dispostos a lutar por programas mais definidos.
2. O sistema universitário está alheio ao ensino de filosofia. Nenhum professor da USP ou da PUC de SP foi ao encontro; os palestrantes, em grande parte, apenas davam a palestra e iam embora; não há um clima de produção teórica, não houve nenhuma boa vontade em criar-se uma fórmula que permitisse troca de experiências entre os participantes; é como se todos já soubessem o que fazer, bastando criar-se um momento de expressão e protesto contra problemas conjunturais, como o desinteresse do Estado de São Paulo em apoiar o ensino de Filosofia. Se isso persistir, o ensino de Filosofia no médio cada vez mais será algo que não terá nada a ver com o ensino de filosofia nas universidades; em suma, estamos à beira de um pequeno desastre.
3. Pouco se estuda, pouco se lê; apenas uma pessoa, em todo o evento, em uma das intervenções de dois minutos, fez sugestões de leituras não esperadas; foi um professor de Ribeirão Preto, leitor de Pierre Hadot. Foi comovente e dissonante, em meio aos apelos generalizados por "filosofias da libertação", ufa, ufa e mais bufa.
4. Os palestrantes, felizmente, apontaram para rumos importantes; Salles e Severino foram muito claros em falar em escola, currículo e pressionaram os participantes para sair da casinha filosófica e ler as Orientações Curriculares, as 500 páginas; Gallo, Apel e Favareto também foram objetivos em suas posições, não ficaram comendo mingau pela beirada, o que costuma ser a regra nesses debates. Mas fica-se com a certeza que o caminho vai ser comprido, há muito o que se fazer, em especial, há muito o que se estudar para sair-se da superficialidade.
5. Em especial, a escola continua sendo o alvo do dicionário das idéias feitas. Lucia Lodi teve toda a razão em chamar a atenção para o fato que a Filosofia não pode ir para a escola assim no mais, sem se dar conta dos problemas pelos quais passa o ensino no Brasil, em especial as dificuldades de ensino-aprendizagem.
6. No mais, há muitas diferenças importantes entre Sociologia e Filosofia. Enquanto os sociólogos falavam sem pudor em problemas trabalhistas e sindicais dos sociólogos, os filósofos apenas escutavam, pasmos. Para eles, que trabalham dentro de uma tradição de 2.500 anos, não faz sentido falar em sindicato de filósofos. Tampouco se pode falar em regulamentação da profissão...
7. Dos anões, como diria Mestre Guina, sou o menor; mas não me convidem para conversas gerais; nunca mais ponho meus pés em eventos que, em vez de ensino de filosofia, querem discutir apenas a filosofia do ensino.

Departamentos de Metodologia de Ensino

Uma das moções a ser votada no final do evento assim rezava:
"As disciplinas de Sociologia da Educação e Metodologia e Prática de Ensino em Sociologia devem ser ministradas por sociólogos e devem ser alocadas nos cursos de Ciências Sociais e respectivos departamentos de sociologia, bem como os cursos de Filosofia da Educação e Prática de Ensino em Filosofia devam ser lecionados especificamente por professores de Filosofia e devem ser alocadas respectivamente nos Cursos de Filosofia e não nas Faculdades de Educação das Universidades".
A redação não é boa, mas se entende o espírito. Em todo o caso, a votação da moções finais foi um dos momentos mais tristes do evento, pois era um arremedo de luta sindical com troca de acusações e disputas fúteis por detalhes.
O povo em geral ficou muito triste, pois muita gente foi para São Paulo, em pleno caos aéreo e na maioria dos casos em longas viagens de onibus, para discutir ensino, e o que se via era uma disputa tola por detalhes, sintoma de disputas entre tendências e posições políticas.

Metodologia severina

Antonio Joaquim Severino referendou as posições de Silvio Gallo. É preciso superar as posições idealizadas sobre o papel da filosofia, da educação e da escola; não podemos esperar delas mais do que podem dar, como se ouve por aí nos diversos salvacionismos invocados para solucionar os problemas da humanidade; a filosofia não pode ser confundida com messianismo ou chave universal. Ela deve estabelecer uma parceria com as demais disciplinas escolares, em espírito inter e multidisciplinar; o professor de filosofia deve conviver com a prática efetiva das demais disciplinas, conhecer seus conteúdos, acompanhá-los. A Filosofia, mais do que um acervo de habilidades ou de erudição, deve representar, no currículo, uma possibilidade de amadurecimento da experiência conceitual do educando. Nesse sentido Severino acompanhou as posições de João Carlos Salles Pires.
Os debates foram razoáveis; faltou tempo, pois a sessão começou muito tarde. Houve de tudo um pouco; as críticas a Deleuze e a essa idéia de "criação" de conceitos (que de resto havia sido amenizada por Gallo que falou, em certo momento, em "recriação" de conceitos; os projetos pedagógicos das escolas são documentos apenas formais, que nada refletem de um planejamento conjunto, coisa que se deve buscar; esse tema foi objeto da fala da presidente da Anfope, profa. Helena, que não deixou de lembrar as dificuldades e impasses na formação de professores.

A mesa da metodologia

O cardápio da mesa de metodologia foi servido por Silvo Gallo e Antonio Joaquim Severino. Foi de bom tamanho, não ficaram atrás da outra mesa. Silvio Gallo começou dizendo que é impossível dissociar o quê e como ensinar, no caso da Filosofia. Que a Filosofia não é uma só, e que precisamos tomar partido para não cair no ecletismo. Devemos declinar de qual perspectiva filosófica falamos, é preciso tomar uma posicão sobre o que é Filosofia. Entende que há três eixos para o currículo: temático, histórico e problemático. Quanto a ele, entende a Filosofia na perpectiva de Deleuze e Guatari, como atividade de criação de conceitos. Ele considera boa essa posição pois ela entende a filosofia como uma atividade de pensamento, define o objeto e o produto da mesma - o conceito - e tem a pretensão de validade universal, delimitando o campo de ação da Filosofia, criacão de conceitos. Considera que essa posição supera a armadilha contida na definição da filosofia como atitude, pois ficar nisso implica uma perda de conteúdo filosófico; evita-se, também, o conteudismo absoluto, que faz do ensino de Filosofia uma transposição de conteudos prontos. Não basta ensinar conceitos prontos, há uma pedagogia do conceito, um exercicio da paciência do conceito, contida na posição de Deleuze, entende Gallo. Depois disso ele expos os quatro passos metodológicos: a sensibilização, a problematização, a investigação e a finalização. Em primeiro lugar a aula consiste na mobilização do estudante para um problema filosófico, com os mais variados recursos, de modo que ele crie empatia com um problema; vale até usar um rap, diz ele. No segundo momento o tema vira um problema; no terceiro o estudante pesquisa na história da filosofia os conceitos criados sobre o tema; no final ocorreria a recriação do conceito do filósofo, no qual o estudante pode, em algum sentido, inventar ou reinventar um conceito que faça sentido para ele. Com isso se pode ver o professor de Filosofia como um intercessor ou mediador, que sai de cena no minuto final.

A mesa dos conteúdos


No dia 23 à tarde tivemos a mesa sobre conteúdos de ensino, na qual falaram João Carlos Salles Pires e Celso Favaretto. Salles perguntou aos participantes - eram umas trezentas pessoas - quem ali havia lido todas as Orientações Curriculares do MEC. Apenas uma moça levantou a mão. Salles convidou todos a conhecer a totalidade dos documentos, e não apenas o documento da Filosofia, em defesa de uma forma de trabalhar com Filosofia que valoriza a contextualização da escolarização do estudante. Explicou que os conteúdos listados no documento da Filosofia são sugestões que originalmente destinavam-se a avaliar os currículos de graduação, e que não devem ser pensados como conteúdos mínimos de ensino; reforçou os argumentos contrários à política de livro didático privilegiado e em favor de antologias ou livros de referência; as respostas que podemos dar sobre o que ensinar, para um país do tamanho do Brasil, são "precisamente vagas". Salles defendeu uma maior aproximação entre o sistema de pesquisa, composto pela rede de Departamentos e dos cursos de pós-graduacão em Filosofia, e o ensino de Filosofia no médio; contou que ele mesmo está empenhado em trabalhos de formação na Bahia; sem esse tipo de política haverá um progressivo distanciamento com consequencias ruins para ambos.
Celso Favaretto falou a seguir, abordando o tema das condições concretas para a legitimação da disciplina de Filosofia nas escolas. Como podemos e devemos pensar a filosofia disciplinarmente, em termos de aprendizagens filosóficas desejáveis e possíveis para alunos de ensino médio? Reconhecendo as dificuldades de se pensar em conteúdos de filosofia, já que ela, acima de tudo oferece uma certa experiência de pensamento, uma certa orientação de pensamento, ele teve a coragem de se perguntar de seria possível a gente chegar a um acordo sobre algumas funções e conceitos gerais, "coisas muito gerais, muito de base", certos conjuntos mínimos de regras, processos, procedimentos fundamentais, presentes nas argumentações humanas, para, a partir daí, se chegar inclusive aos textos e à história da filosofia. Conceituar, argumentar e problematizar seriam uma tríade de procedimentos a ser focados, valorizando-se uma certa inseparabilidade entre conteúdos e procedimentos filosóficos. Celso não defendeu um consenso sobre conteúdos mínimos, mas sim um acordo sobre uma formação básica que envolve o domínio de "regras de funcionamento que ligam os conceitos"; reconheceu o longo caminho que isso supõe que percorramos. Foi das melhores, a mesa sobre conteúdos.

Ensino Médio


Na mesa sobre ensino médio quem falou primeiro foi o Prof. Emmanuel Appel, que defendeu o ensino de filosofia no nível médio baseado nos textos dos filósofos: "A filosofia some sem os clássicos, cujos textos devem ser a primeira e a última referência do ensino de filosofia no nível médio". Essa posição, diz ele, deve representar um enfrentamento à indústria cultural e ao barateamento dos conceitos. Lúcia Lodi, do MEC, organizadora dos PCN e das Orientações Curriculares, fez uma bela apresentação sobre o estado de coisas no ensino médio, defendendo o alargamento do debate sobre o ensino de Filosofia e Sociologia. Ela explicou que a posição do MEC é pela constituição de bibliotecas escolares com obras de referência em Filosofia, sem a indicacão de manuais ou livros didáticos. O MEC vai apoiar a elaboração de um livro de referência para professores, sob responsabilidade da Anpof, mas sem a característica de livro didático. O terceiro palestrante sobre ensino médio, Edeum Sauer, da Bahia, falou sobre a falta de identidade do ensino médio - tema que havia sido abordado por Lucia -.
A posição de Apel foi recebida com receios, em nome do perfil do aluno de nível médio, eventualmente pouco afeito às leituras. Teve gente que foi direto ao ponto, dizendo que era contra essa coisa de ler os clássicos enquanto a barbárie campeava solta...
A soma das vontades individuais resultaria num impossível: uns querem que a Filosofia seja uma disciplina curricular com muitas horas de aula, enquanto outros gastam o verbo para falar contra o conhecimento fragmentado, disciplinar...

Primeiro Encontro Nacional sobre Ensino de Sociologia e Filosofia


Depois de um adiamento, finalmente saiu o encontro, entre 22 e 24 de julho. No domingo à noite tivemos apenas a mesa de abertura, sem o Ministro da Educação. Veio gente de todo o Brasil, desde Roraima até o Rio Grande do Sul, ao redor de 700 professores. A frustração foi grande, no entanto. As mesas específicas sobre ensino de Filosofia foram muito boas. Foram ótimas as falas de João Carlos Salles, Celso Favaretto, Silvio Gallo, Joaquim Severino na tarde de segunda e na manhã da terça. A mesa sobre ensino médio, com a Profa. Lucia Lodi, do MEC, Emmanuel Appel e Edeum Sauer, Secretário da Educação da Bahia, foi muito boa, mas o mesmo não se pode dizer dos debates, todo ele centrado em questões pouco pertinentes, voltadas para o mundo sindical de São Paulo. A APEOESP é o maior sindicato de professores do Brasil, e tamanho poder se transforma em fonte de disputas contínuas entre as tendências internas. Isso prejudicou muito os debates e irritou profundamente os participantes, que esperavam uma honesta conversa e troca de experiências.

sexta-feira, julho 6

Odisséia


Conheço duas traduções da Odisséia para nossa língua. A mais famosa delas é a de Manuel Odorico Mendes (1799-1864), publicada pela primeira vez em 1928. Odorico é um maranhense, que fez seus estudos em Portugal e que veio a falecer na Inglaterra, literato, político, e tradutor. A sua versão da Odisséia foi republicada em 1996, numa edição muito bem cuidada, pela editora da USP. É dificílima de ser lida, por causa da sintaxe ali adotada.
Outra tradução foi publicada pela Abril Cultural, em 1981, feita por Antonio Pinto de Carvalho, a partir da tradução francesa. Já havia sido publicada pela Difel. Nunca fui estudioso de Homero e imagino que existam outras.
Saiu agora uma nova tradução, feita por Donaldo Schüler, em Porto Alegre, e publicada pela LPM. Ontem fui na Cesma e ela havia chegado, estava ainda na caixa. Gilmar fez a bondade de me vender os três volumes. Ela saiu em três pequenos volumes, o primeiro - Telemaquia - ao módico custo de sete reais. Comecei a ler ontem antes de dormir, para ver se engrenava. Foi dificil largar o livro. Hoje dei mais duas pegadas e terminei o primeiro volume.
O texto ficou ótimo, escorreito, esplendente, auroral e com hecatombes impecáveis, como dizia Homero. O tradutor, Schüler, adotou a forma de prosa e faz do Homero um legítimo contador de histórias, que a gente vai acompanhando com o maior encantamento.
O primeiro volume conta as atribulações de Telêmaco, filho de Odisseu/Ulisses, agoniado por obter notícias de seu pai, já que sua mãe, a paciente Penélope, sofre assédio dos pretendentes, certos da morte do herói; enquanto esperam a decisão da senhora, comem todas as cabritas da família. Telêmaco faz sua pequena viagem de herói, completando sua adultez na medida em que sai em busca das notícias do pai.
As novas gerações deveriam agradecer muito ao Donaldo pelo serviço.
Na ilustração, em um vaso grego, o jovem Telêmaco conversa com o velho Mentor, que o orienta...