quinta-feira, junho 30

Que significa dizer a verdade?

“Desde a época de nossa vida em que passamos a dominar a linguagem, somos ensinados que nossas palavras devem corresponder à verdade. Que significa isso? Que quer dizer "falar a verdade"? Que exigências isso implica?”
A passagem acima foi escrita por um brilhante teólogo da Igreja Luterana, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Ele foi um importante escritor, defensor do ecumenismo, estudioso de filosofia. Fez oposição ao nazismo, com ações concretas de apoio a judeus que tentavam escapar da Alemanha. Na verdade, foram seus esforços em ajudar os judeus e sua participação no complô para assassinar Hitler que o levaram à prisão. Dizem alguns biógrafos que Hitler encomendou o enforcamento dele, em 9 de abril de 1945, dias antes dos Aliados tomarem a prisão onde ele estava.
Escaneei um dos textos mais importantes de seu livro sobre Ética, para ajudar nas discussões sobre esses tópicos de ética que tem chamado a atenção de alguns participantes do “moranafilosofia”. Você pode encontrar o texto clicando no link acima, à direita, em “Quadro de Avisos”, depois em “Arquivos e Leituras”. O texto é muito bom. Deveria ser de leitura obrigatória para professores, em especial. Se você tem problemas com textos que falam e Deus e Satanás, não se deixe levar por isso, vai ver que mesmo não acreditando em Deus você pode aprender muito com os bons teólogos.

Língua materna, língua paterna

“Os livros devem ser lidos deliberada e reservadamente como foram escritos. Não é suficiente estar-se habilitado a ler na língua da nação para a qual foram escritos, pois há uma memorável distância entre a língua falada e a escrita, a que se ouve e a que se lê. Uma é comumente transitória, um som, uma língua, um dialeto, quase inculto, que nós aprendemos inconscientemente, como os animais, com nossa mãe. A outra é a maturidade e a experiência da primeira, e que se esta é a língua de nossa mãe, a outra é a de nosso pai, uma expressão reservada e escolhida, demasiadamente significativa para ser percebida pelo ouvido, e que para falá-la seria preciso que nascêssemos outra vez.”
(Henry David Thoreau, "Walden", na tradução de E. C. Caldas. Ediouro, 1968, p. 133)
Se você é meu aluno na disciplina de Filosofia da Linguagem, por favor, leia a Ficha 08, sobre palavra e penhor. Já está disponivel nos Arquivos. Basta clicar no link acima, à direita, onde diz "Quadro de Avisos".

quarta-feira, junho 29

Mentir ou dizer a verdade?

O que é mais fácil, mentir ou dizer a verdade? Parece que mentir é mais fácil. Um amigo doente, no hospital, nos pergunta o resultado de um exame, e a gente resolve esconder dele a verdade. Sabemos que ele não vai durar muito, mas dizemos que ele está bem, logo vai estar de volta em casa. Com nossa mentirinha achamos que estamos fazendo um bem. Até pode ser. Mas também pode não ser. O amigo pode, no fundo de seu coração, estar querendo saber a verdade para poder tomar as decisões que vem adiando uma vida inteira. Mas tem mais do que honestidade nesse tópico. Acho que mentir dá mais trabalho. Estou pensando aqui nesses depoimentos das cpis – mensalão, correio, bingo, etc.. Dizer a verdade requer, basicamente, o trabalho da memória: contar o que aconteceu, o que vimos, o que ouvimos, o que fizemos. Dizer a mentira exige o trabalho da imaginação, da invenção, da criação, da ficção. Ora, se a gente inventa uma história, ela nos enreda e nos obriga a manter uma coerência: entre os personagens, entre os personagens e a realidade, entre os fatos contados, etc.. A gente tem que lembrar cada passo da mentira para que ele seja coerente e consistente com os demais fatos. Pense no tal do Marcos Valério que, ao que tudo indica, era o homem da mala de dinheiro: o desvalido imaginou que daria conta do recado dizendo que sacava moeda corrente nacional para pagar as vaquinhas que comprava, pois os pecuaristas assim o fazem. O idiota não se deu ao trabalho de investigar – ou achou que todos são idiotas como ele - como são feitos os negócios nessa área: nunca tem dinheiro vivo, tudo é com prazo e muito calote no meio. É mais fácil dizer a verdade (neste sentido, digamos, lógico) e existem bons argumentos filosóficos para isso. O carequinha, quem sabe, vai ser uma prova viva disso.

O homem amoral

É possível, para um ser humano, colocar-se completamente fora do âmbito da moralidade? Ele seria alguém que perguntaria “Por que eu deveria ou precisaria fazer tal e tal coisa?” e isso ficaria sem resposta. Esse é o ponto de partida de um excelente livro de introdução a ética, recentemente lançado no Brasil, de autoria de Bernard Williams. Ele começa exatamente com esta cena de discussão com alguém que pretende ficar fora do âmbito da moralidade, daí decorrendo essa expressão, o ‘homem amoral’. Esse é o primeiro livro de Bernard Williams (1929-2003) traduzido em nosso país. BW, para quem não sabe, era professor em Oxford e Berkeley, e foi um dos filósofos que muito contribuiu para aumentar as pontes entre a dita ‘filosofia analítica’ e a ‘filosofia continental’, mostrando que o mundo é um pouquinho mais complicado do que a vâ dicotomia entre a turma do mal e a turma do bem. Vale a pena ler o livro. Saiu pela Editora Martins Fontes, neste ano, com o título “Moral: uma Introdução à Ética”. O segundo capítulo será de grande auxílio para quem leciona precisa enfrentar discussões sobre subjetivismo e relativismo na moral.

terça-feira, junho 28

Filosofia na mídia. Filosofia?

A revista Carta Capital e a Veja desta semana abrem espaço para resenhas de livros de, digamos, filosofia. Ou seriam livros a pretexto da filosofia? Na Carta Capital a matéria, boa, tem como título “Pobre Platão”, e fala sobre os “descaminhos do ‘aconselhamento filosófico’ e da vulgarização da filosofia”. O desencaminhador da hora é um tal de Lou Marinoff, autor de livros como “Mais Platão, menos Prozac” e “Pergunte a Platão”. A revista ainda comenta, com mais piedade, mais um livro de Alain de Botton a ser lançado nos próximos dias aqui no Brasil, “Desejo de Status”, pela Rocco. A Veja dedica duas páginas exatamente a esse livro. Allain de Botton já tem dois livros publicados no Brasil, “As Consolações da Filosofia” e “Como Proust pode mudar sua vida”. A Carta Capital ainda traz, na mesma edição, uma entrevista com Michel Onfray, autor do “Tratado de Ateologia”, uma defesa do ateísmo e uma denúncia do “papel devastador das religiões na história da humanidade”. Ele foi entrevistado, semanas atrás, nas páginas amarelas da Veja, se lembro bem. Mais: o Sócrates (não o filósofo, e sim o jogador de futebol) escreve sobre Sartre, na mesma edição da Carta Capital, a propósito dos 100 anos que Sartre completaria no dia 21 de junho pp. Na Folha de S. Paulo de domingo o destaque ficou por conta do José Arthur Giannotti, que volta a abordar o malfadado assunto da ética na política. Giannotti até que pegou leve, lembrando-se o quanto foi espancado quando ousou dizer, no tempo do FHC, que esse tema era mais complicado do que pensavam os petistas.
A notícia boa, do ponto de vista editorial, mas que passou até agora em brancas nuvens, é a publicação do livro de Colin McGinn, “A Construção de um Filósofo”, pela Record. A Cesma já encomendou, e voltarei a ele num próximo post. McGinn é o cara do mistério da consciência.

segunda-feira, junho 27

Filosofia da Religião e Teodicéia

Esta postagem destina-se a apresentar aos leitores deste blog Raúl Márquez Sullivan. Raúl é um ex-professor de Filosofia da UFSM, depois professor de Filosofia na Federal de Santa Catarina; Raúl é um filósofo de rara competência e sensibilidade, dono de um estilo fino, elegante e cortante. As pessoas que puderam privar com ele, como colegas ou alunos, no tempo em que trabalhou aqui, tem somente boas lembranças desse convívio. Raúl mantém um blog desde 2003, no endereço http://rmarquezsullivanphd.blogspot.com/ . Recomendo muito uma visita, é um pequeno tesouro de textos notáveis. Ele fez um comentário sobre a natureza da disciplina “Filosofia da Religião” que está agora aqui embaixo, na parte principal do “moranafilosofia”. É uma reflexão que nos coloca ‘in media res’ na discussão desses tópicos que tanto chamam a nossa atenção:

"Estimado Ronai,

La cuestión de una filosofía de la religión se coloca por primera vez allí donde el pluralismo comienza a ser la atmósfera normal de la sociedad; y esto quiere decir: filosofía de la religión se da solamente cuando en la sociedad domina un cierto escepticismo. El filósofo contempla a la religión, por decirlo así, desde fuera y por encima: no es por casualidad que, desde el punto de vista gramatical y sintáctico, filosofía de la religión sea un genitivo objetivo. Pero al contemplar la religión desde la perspectiva divina, el filósofo ya no se compromete con ella. Descubre, por ejemplo, que no hay una religión, sino varias, que se encuentran compitiendo entre sí por el corazón y la mente de las personas; y que no hay solamente varias, sino diferentes tipos y grados de religiones. Cuando nuestro filósofo esto descubre, él no filosofa, sino simplemente constata lo que en la sociedad está ahí, que responde a nuestro estado actual de civilización.

La filosofía de la religión, entonces, me parece contener una actitud desde el comienzo antifilosófica. En su empeño, no me parece diferenciarse, digamos, de una sociología de la religión; el pluralismo llevó al escepticismo –o el escepticismo al pluralismo, como se quiera ver– pero este tipo de escepticismo, contra todas nuestras expectativas, no nos conduce a la filosofía, sino todo lo contrario: nos aleja de ella. Ninguna pregunta substancial ha sido colocada; ningún problema que queme los dedos o que haga arder el corazón de las gentes.

Es que la filosofía de la religión no me parece que pueda ocuparse sino de los rasgos comunes de las religiones existentes, haciendo una especie de taxonomía como en la botánica, determinando los géneros de religiones y sus especies, pero no conduciendo en sí misma al elevado oficio de la reflexión: que consiste en colocarse un problema en el que nos vaya la vida.

La correcta respuesta a la cuestión no me parece dada por la filosofía de la religión, sino, más bien, por la teodicea. Éste es el término inventado a fines del siglo diecisiete o a comienzos del siglo dieciocho, en la escuela de Christian Wolff, y que fuera asumido y desarrollado por Leibniz. Fue en la época en que aconteció el famoso terremoto de Lisboa, que permitió a Voltaire formular la cuestión de cómo es posible la existencia de Dios en un mundo que dio lugar a semejante catástrofe.

Se trata de una pregunta que sentí vibrar durante un instante en los medios de comunicación a fines del año pasado, en ocasión del tsunami que asoló el sudeste asiático.

Pero lo que podía conmover a Voltaire no creo que nos pueda conmover tanto a nosotros en este momento. Hay, sí, otras cuestiones que sí pueden hacerlo, como por ejemplo: “¿cómo puede ser que exista Dios, después de Auschwitz”? En verdad no sé cómo una disciplina como la filosofía de la religión se ocuparía del problema. Sí la teodicea, que de manera filosófica se coloca la cuestión de justificación de la existencia de Dios en un mundo en el que existe el mal.

¿Por qué Dios, si existiera, habría de permitirlo?

Éste no es el lugar para explanarme sobre la respuesta de Leibniz, que no deja de tener su deuda con las concepciones y prejuicios de su tiempo. Pero sí es el lugar para reflexionar sobre la naturaleza de la teodicea, que equivocadamente o no, se coloca una cuestión que es filosófica: la cuestión del sentido (sentido del mundo; de la existencia, etc); por contraste a la filosofía de la religión, que no me parece que se coloque cuestión filosófica alguna.

La pregunta acerca de Dios después de Auschwitz es, por ejemplo, una pregunta filosófica, cualquiera sea la respuesta que se le dé. Hans Jonas, en breve y penetrante ensayo, dio una respuesta cuya fecundidad no me parece aún agotada; y que perseguida con obstinación, posiblemente sea mucho más fecunda y nos lleve reflexivamente más lejos que la simple negación de su existencia – con la cual se acaba todo el problema para la reflexión.

Es claro que se podrá decir: pero, ¿cuál es el uso que das a la palabra “sentido”? ¿Qué significa “existencia”? ¿ Puede hablarse de Dios como de un sujeto, si la “existencia” no es un “predicado”?

Es claro que estas preguntas son importantes, y deben tenerse en cuenta, como tú lo haces, por una razón de profilaxis del pensamiento.Pero lo que mantiene esterilizado al pensamiento en el sentido de la higiene tal vez no sea lo mismo que lo nutre. Aquellas cuestiones son válidas en un cierto sentido, pero niego que sean válidas absolutamente. Tienen validez heurística, en todo caso; pero dudo que tengan validez, horribile dicendo, ontológica.

(Lo mismo daría colocar el Soneto 18 de Shakespeare o una tela de Van Gogh en una solución ácida, para poder, a través de semejante análisis, saber de qué se compone su sentido. O, como dijo Heidegger una vez, parafraseando a Platón, “intentar probar la capacidad del pez de sobrevivir en lo seco”.)

Hay una cualidad heurística, por su parte, en la pregunta por la existencia de Dios que sólo se comprende en ocasión de acontecimientos extremos y únicos, por decirlo así, como el tsunami del año pasado y el Holocausto en el siglo pasado: son preguntas y cuestiones que nos exigen una respuesta, y no sólo una respuesta teórica; sino, sobre todo, una respuesta práctica. Todas ellas llevan a la misma cuestión, acerca del sentido del sentido. Pero no creo que la materia llamada “filosofía de la religión” pueda darles una respuesta."

rmarquezsullivan

sábado, junho 25

Gi

Gi é uma estudante de nosso curso de Filosofia. Ela foi estatística anônima do SUS na madrugada da sexta-feira. Chegou no PA do Hospital Universitário na noite de quinta, acharam possibilidade de problema de apendicite, residente para cá e falta de vaga para lá, ficou das oito da noite de quinta-feira até as onze da manhã da sexta sentada numa cadeira de plástico na sala de espera do PA do Campus. Enquanto isso, as urnas eram apuradas, etc. Marcelo, outro amigo, ficou horas no corredor do Caridade, esperando quarto. Tá certo, chegou o inverno, frio, doenças típicas: não tem vaga nos hospitais de Santa Maria, a gente não pode inventar de ficar doente agora; no ano passado, era a mesma coisa; no ano retrasado, era a mesma coisa, no ano mais atrasado ainda, era a mesma coisa de novo. Depois se queixam que a gente enche o saco de certas conversas e de certas autoridades.

Uma DCG de Filosofia da Religião?

Juliana Mezzomo pergunta sobre a possibilidade de uma disciplina complementar (DCG) sobre Filosofia da Religião. Há uma proposta em debate entre alguns professores. Se não sair no próximo semestre, deve sair no outro. O Colegiado do Curso entende que as DCGs devem também ser planejadas a partir das demandas e interesses dos estudantes, e pelo que estamos vendo, esses tópicos são de interesse de muitos estudantes. Eu diria que um aprofundamento do tópico das descrições definidas seria bom. Aproveito para reforçar a idéia que se você entrar numa discussão sobre a existência de entidades divinas e não souber lidar com o debate sobre a natureza do conceito de “existência”, fica no prejuízo. Como disse na aula, se “existe” não é um predicado, como você vai dizer que “Deus” é sujeito, na frase "Deus existe". A existência é um predicado? Mais uma vez: veja a importância de uma boa formação em Filosofia da Linguagem para uma discussão sobre a existência de entidades divinas).

quinta-feira, junho 23

Eleições na UFSM (III)

Ouvi, com certa nostalgia, as entrevistas do Marlon Herath, na CDN, com o Professor Gilberto Benetti e o Professor Odilon do Canto, sobre seus periodos de reitorado. Foi meio inevitavel associar esses nomes com o fato que ambos passaram o Passo Verde, depois de seus reitorados. Um está hoje no Conselho Nacional de Educacao, como Secretário Geral. Outro, como vice-presidente da Finep. A UFSM por vezes me parece grande demais para Santa Maria, pequena demais diante de si mesma. Meu desejo: que o Reitor hoje escolhido - são 22.10 - não se intimide com a falta da ponte aérea entre Santa Maria e Porto Alegre.

Natureza Humana (II)

Eu não assisti a entrevista de Roberto Jefferson ao Roda Vida, na segunda-feira. Mais de uma pessoa que assistiu falou sobre a resposta que ele deu para a pergunta de um repórter, se ele, RJ, era corrupto. Jefferson respondeu com a pergunta: "é possível encontrar um fio de água pura em um cano de esgoto?"
O que ele quis dizer com isso? Parece haver apenas uma resposta, que foi apenas uma forma retórica de dizer que "sim, somos todos água servida da mesma torneira e farinha do mesmo saco". Seria uma generalização que quer levar todos os políticos para o mesmo encanamento. Nessa hipótese, como se salvaria o que ele mesmo diz? Por que razão a fala dele não seria também corrompida? “Eis aqui meu pescoço à corda”, ele diria em resposta, como lastro para a exceção de seus ditos. Ou RJ estaria apenas provocando os entrevistadores, insinuando que todos sempre souberam de tudo, apenas não tiveram a coragem de dizer em publico o que todos diziam em boca pequena? Para quem faz pergunta boba, nada mais adequado que uma resposta ainda mais boba.
E bobos ficamos. Esse período de fatos e notícias coloca na ordem do dia o que pensamos sobre a natureza humana. Daí surge um link com a nossa folk philosophy. A expressão “folk psychology” é termo técnico, e não existe um equivalente para a filosofia. Podemos, no entanto, entender que faz parte da “psicologia popular” um conjunto de hipóteses sobre o que é mesmo a natureza humana, e que isso faz vizinhança com a “filosofia popular”, por certo, na medida em que certos tópicos – mente, linguagem, corpo, etc – não são propriedade privada de nenhum campo conceitual.

Ao leitor ou leitora Gauche, que deixou um comentário: eu gostaria de começar a esclarecer um pouco a citação de Íris Murdoch; a natureza da corrupção e da natureza humana é o pano de fundo dessa conversa. Mas hoje posso apenas mostrar o contexto da citação que fiz na postagem de dois dias atrás. A frase que citei está em um escrito dela, intitulado “A soberania do Bom sobre outros conceitos”:
“Frequentemente se diz que o Bom é algo indefinível por razões que se ligam com a liberdade. O Bom é um espaço vazio, no qual a escolha humana pode se mover. Eu quero agora sugerir que a indefinibilidade do bom poderia ser concebida de outra forma. No tipo de concepção que estou oferecendo, parece que nós realmente conhecemos bastante sobre o Bom e sobre a forma na qual ele está conectado com nossa condição. A pessoa comum, a menos que esteja corrompida pela filosofia, acredita que ela cria valores ao fazer suas escolhas. Ela pensa que algumas coisas realmente são melhores do que as outras e que ela é capaz de se enganar (getting it wrong). Normalmente não estamos em dúvida sobre para que lado fica o Bom. Da mesma forma, reconhecemos a existência do mal: o cinismo, a crueldade, a indiferença diante do sofrimento. No entanto, o conceito de Bom permanece ainda obscuro e misterioso. Nós vemos o mundo à luz do Bom, mas o que é o próprio Bom?”
“A pessoa comum, a menos que esteja corrompida pela filosofia, acredita que ela cria valores ao fazer suas escolhas.”
Essa atribuição de crença à pessoa comum é razoável? As pessoas comuns, de forma explícita, acreditam nisso ao fazer suas escolhas? Elas apenas escolhem, você diz. Para Murdoch, a ocupação do filósofo é, entre outras coisas, tentar explicitar aquilo que fazemos de forma, digamos, instintiva. Então, o que é que implicitamente fazemos ao escolher? Digamos, terminar o namoro, continuar um casamento, escolher um candidato à reitoria? Decidir-se, diria ela, é colocar-se ao lado de um valor, e com isso recriar esse valor. Por vezes, criar um valor.
O tema é interminável. Uma forma de continuar é conhecer um pouco mais o pensamento de Íris Murdoch. Fiz uma tradução de um texto dela que pode ajudar, que está disponível em http//homepage.mac.com/ronairocha, em “Arquivos para baixar”; procure ali o arquivo “Sobre Deus e Bom”.

quarta-feira, junho 22

Eleições na UFSM (II)

Universidades são instituições muito antigas, criadas por volta do ano 1200 e até hoje muito parecidas em seus formatos organizacionais. Sobre esse conservadorismo das universidades há uma comparação interessante. Dizem que Cézar, o imperador romano, diante de um certo rio da Gália recém conquistada, ficou intrigado pois olhava para o rio, esparramado na planície, e não conseguia perceber para que lado corriam as águas. A universidade, diz um escritor italiano, é como esse rio da Gália; ela se mexe, ela se transforma, mas muito devagar, tão devagar que quem olha para ela, como César diante do rio, nem sempre consegue perceber para que lado ela está indo.
Um visitante pediu mais postagem sobre os entortamentos da filosofia. Tá na lista.

terça-feira, junho 21

Natureza Humana

As postagens que fiz sobre ‘entortamento pela filosofia’ me causaram um certo desconforto, por duas razões. De um lado, me pareceu que ficaram um tanto enigmáticas, carentes de maior explicitação, mas isso não cabia na hora. De outro, fiquei cavocando na memória a fonte principal de minha inspiração, já que, embora o tema exista em Cavell e Austin, em nenhum dos dois se encontra uma formulação parecida com a que usei. Agora, depois de ouvir o depoimento da secretária Fernanda Karina e do Mauricio Marinho, e tentando avaliar a forma como falaram, o tom de voz de cada um, as pausas, os volteios do olhar, o jeito do Mauricio Marinho lamber os próprios lábios, me ocorreu que deveria reler as coisas que Íris Murdoch escreve sobre a natureza humana, sobre o jeito como somos. Não deu outra: lá está, em “The sovereignty of good over other concepts”, a frase sobre as pessoas comuns, que, “unless corrupted by philosophy”... A palavra é mais forte do que a escolhi, propositadamente, “entortado”; ela diz “corrupted”. Bueno, fico por aqui, O tema volta noutra postagem; misturar esses dois tipos de corrupção seria uma tremenda injustiça para com Íris Murdoch.

Eleições na UFSM

Quinta-feira, dia 23, tem eleições na UFSM. A gente vota em uma chapa que tem dois nomes; a chapa que faz mais votos fica em primeiro, etc. Essa hierarquia entre as chapas é comunicada aos conselhos superiores da Instituição, Curadores, Universitário e de Ensino e Pesquisa. Os membros desses conselhos, reunidos em uma sessão, fazem votações secretas, uninominais, e montam uma lista com os três nomes mais votados e mandam para o Ministério da Educação, que pode nomear quem quiser dessa lista. Beleza. Esse conselho deve ter participação de setenta por cento de docentes. Tem gente que defende voto universal: cada homem, um voto. A questão que fica no ar: em que sentido a Universidade é um corpo político semelhante ao Estado? Até que ponto, diante das características de uma Universidade, podemos ir com esse conceito da universidade como uma pequena sociedade política? Parece ser a situação na qual as conveniências de ocasião (que incluem, por certo, uma aposta no espírito de participação) são bem maiores do que as consistências de fundo.

domingo, junho 19

Peter Geach e os entortamentos

Um aluno, dias atrás, me fez lembrar outra passagem de Peter Geach, a saber, sobre a importância do exercício intelectual de exame das “conseqüências de casos imaginários, por exemplo nos problemas de aritmética ou de álgebra escolar, em livros de quebra-cabeças ou na composição de ficção. Esse uso dos argumentos nos é muito familiar, mas dizem que algumas pessoas de culturas primitivas acham muito difícil compreendê-lo; e certamente nós próprios devemos aprendê-lo. Littlewood, o matemático de Cambridge, conta a história de um mestre-escola que começou enunciando um problema: 'Suponham que y é o número de ovos...' - 'Mas professor, por favor, professor, suponha que y não é o número de ovos?' (Por que esta questão é absurda?)”.

De novo, a tradução que estou postando aqui é de minha querida amiga Rejane.

Testemunho

Uma homenagem ao filósofo Peter Geach:
“ É claro que a memória e a observação próprias de uma pessoa não a levariam muito longe. Começamos, em criança, acreditando no testemunho dos outros sem qualquer exame ou qualquer inferência, e seria impossível para um adulto sofisticado conferir muitas coisas. Há na verdade maneiras de descobrir que uma autoridade que antes reconhecíamos não é confiável; mas mesmo aqui cada indivíduo deve confiar muito amplamente em checagens realizadas por outros, que ele próprio só conhece por testemunho.
Obviamente, nem todo testemunho é confiável; uma pessoa prudente terá aprendido a aplicar certos princípios sobre o que torna alguém um mau observador ou um repórter inexato ou inverídico. Diz-se desses princípios que eles são 'apreendidos com a experiência'. Porém, mais uma vez, não é a experiência pessoal do indivíduo prudente que lhe ensina tais princípios; ele confia na experiência geral da humanidade sobre a confiabilidade do testemunho. Mas a experiência geral da humanidade é novamente algo que só se pode apreender confiando no testemunho.
Podemos confiar na observação, memória e testemunho só de maneira geral; tentar aceitar cada detalhe como verdadeiro nos colocaria em positiva inconsistência. Devemos então dizer: 'cada um deve julgar por si mesmo'? Num sentido, isso é uma trivialidade; tomado em outro sentido, é simplesmente tolice. Se queremos dizer que, seja o que for que uma pessoa julgue, ela está julgando assim, então isso é uma tautologia da qual não se segue nada de interessante. Se, por outro lado, queremos dizer que estamos logicamente proibidos de aceitar a autoridade de quem quer que seja sobre qualquer coisa, então isso é um princípio completamente tolo. Alguém que decide confiar numa autoridade está de fato fazendo um juízo sobre essa autoridade. Mas, ao fazê-lo, não está assumindo a posição de juiz, não está se colocando a si próprio como uma autoridade mais alta. Recomendando alguém como um bom advogado ou médico, não estou pretendendo ser eu próprio um advogado ou médico ainda melhor.”
Eu mesmo, como diria Mestre Guina, não vou fazer nenhum comentário. Exceto que esta bela passagem de Peter Geach foi traduzida por uma das mais belas filósofas do Brasil, Rejane Carrion.

Tortos pela Filosofia (I)

Na semana passada um aluno fez um comentário em aula que sugeria uma desqualificação do testemunho como fonte de conhecimento. Era como se o aluno quisesse dar a entender que podemos confiar plenamente apenas naquilo que nós mesmos percebemos, e que no caso do testemunho de outros a coisa sempre fica em suspenso. O entortamento pela filosofia consiste nisso: se a gente pensasse com a própria cabeça ficaria evidente o quão pouco podemos ir adiante na vida apenas baseado no que podemos perceber por nós mesmos. Mas, ao invés disso, costumamos pensar com a cabeça da história da filosofia, que em grande parte desprezou o testemunho, teorizando sobre o conhecimento a partir da ficção de uma consciência solitária diante do mundo. Todas as grandes teorias do conhecimento da modernidade usam esse modelo.
Austin, na metade do século vinte, escreveu essa frase, no artigo “Outras Mentes”:
"É fundamental na conversação (como em outras matéria) que tenhamos o direito de confiar nos demais, exceto no caso em que haja alguma razão concreta para a desconfiança. Acreditar nas pessoas, aceitar testemunhos, é um dos aspectos principais, senão o principal, da conversação. Nós não disputamos jogos (competitivos), exceto acreditando que nosso oponente tenta vencer: se ele assim não proceder, não é um jogo, mas algo diferente. Assim, nós não conversamos (descritivamente) com as pessoas, exceto acreditando que elas tentam transmitir informação."
Uma pessoa não deformada pela filosofia acha estranho que isso tenha que ser dito: não parece ser o tipo de coisa evidente por si mesma? Sempre que exista alguma razão concreta, devemos duvidar dos outros. Mas apenas nessas ocasiões. Isso inclui, por exemplo, aqueles testemunhos que, por mais apaixonados e aparentemente siceros, queremos que sejam examinados. Vide affaire Roberto Jefferson e José Dirceu.

Em 1997 comecei a escrever e publicar, no corredor do Curso de Filosofia da UFSM um pequeno boletim para os alunos da disciplina de Introdução à Filosofia. Outros números foram feitos como apoio à outras disciplinas que lecionei depois. O boletim tinha o papel de continuar a conversa da sala de aula, de transferi-la para os corredores. Uma das razões disso é o fato de o Departamento de Filosofia, faz já alguns anos, ter tomado a decisão (lamentável, a meu ver!) de reunir as aulas das disciplinas de 60 horas numa mesma manhã ou tarde. Assim, as atividades com os alunos são feitas em apenas uma ocasião da semana. Ora, além da desvantagem de haver apenas um encontro semanal, há uma outra, que consiste na paulatina redução do número de horas-aula: afinal, o cumprimento do período completo exigiria uma aula com início às 8:30 e final às 12:10, descontado o intervalo! Na prática, isso nem sempre acontece, com atrasos e boicotes informais, na forma do ‘hoje eu preciso sair mais cedo um pouco...”. “Moranafilosofia” surgiu como um esforço de aumentar a interação com os alunos por meio de um jornal mural. Esse blog é uma tentativa de retomar a idéia inicial: criar um espaço adicional de conversas, sobre o que acontece nas aulas e outras conversas mais.