terça-feira, junho 26

"Alfabetização de segunda ordem".

Ando lendo as "Orientações Curriculares para o Ensino Médio", publicação do MEC em três volumes, 500 páginas no total. Representa, em algum sentido, o estado da arte em termos do pensamento curricular aplicado ao médio. Li tudo e fiquei surpreso com muitas coisas. Para a maioria delas gostaria de aplicar o dito de Cervantes, "no quiero acordarme". Uma das coisas que me chamou a atenção foi a insistência em se falar em "alfabetização científica", "alfabetização cultural", "letramento crítico" e assemelhados.
No documento da área de Biologia, por exemplo, está a seguinte definição para a “alfabetização científica”:
“Esse conceito implica três dimensões: a aquisição de um vocabulário básico de conceitos científicos, a compreensão da natureza do método científico e a compreensão sobre o impacto da ciência e da tecnologia sobre os indivíduos e a sociedade.” (Orientações Curriculares, p. 18).
No documento da área de Artes, temos a seguinte passagem: “(...) o que se chama de alfabetização cultural: possibilitar que o aluno desenvolva competências em múltiplos sistemas de percepção, avaliação e prática de arte”. (Orientações Curriculares, p. 177).
Com pequenas variações esse conceito está presente em outros documentos oficiais do ensino básico, desde dos PCN, creio eu.
A alfabetização em sentido estrito diz respeito ao domínio de habilidades de leitura e escrita na língua materna; se poderia dizer, trata-se do domínio pleno de um código. Não se deveria falar em "código", parece rebaixar a língua materna. É preciso falar em código, no entanto, porque o aprendizado da escrita e da leitura implica muitos conhecimentos de natureza para-linguística: a correspondência entre espaços no papel e intervalos de silêncio ou não-significatividade, a direção do olhar, o ponto do papel onde o olho começa, e por aí vai. Como entender essas outras alfabetizações? Eu proponho chamá-las de alfabetização de segunda ordem. Elas se referem ao domínio de conhecimentos e habilidades que supõem a boa realização da alfabetização em sentido restrito e que vão além do domínio de informações para memorização e mesmo aplicação; posso dominar um conjunto de noções científicas mas ter poucas habilidades quando se trata de ter uma atitude científica diante de um problema qualquer porque não compreendo adequamente a natureza do conhecimento científico. Grande parte do que chamamos de 'consciência crítica' nada mais é do que alfabetização de segunda ordem, espécies do mesmo gênero, como diria McGinn.
Seria possivel pensar que a ênfase que se vê por aí nisso que chamo de alfabetização de segunda ordem indica uma preocupação com aspectos da formação curricular que tem sido desatendidos e para os quais tornam-se necessárias estratégias de trabalho que vão além dos limites de cada disciplina em particular. São raras, no entanto, as iniciativas de formação e o desenvolvimento de competências em desenho curricular que visem exatamente tal área de conhecimentos e habilidades. Aqui entraria uma honesta aula de Filosofia na escola média.
Fica aqui o copiráiti: "alfabetização de segunda ordem".

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