domingo, abril 1

Érico Veríssimo e Deus

No dia 10 de Outubro de 1968, em outra carta dirigida a Armindo Trevisan, Érico reflete sobre Deus.
"Se por um lado estou do lado dos que querem ver isso a que se chama realidade sem ilusões e fantasias (o que causa os distúrbios mentais, os traumas, os desencontros, as desgraças do homem adulto são as mentiras que seus avós e pais lhe contaram, as 'notícias' falsas do mundo transmitidas em contos de fadas, fábulas com moral, histórias de heróis), por outro detesto esse ar de fim de mundo que certos poetas, romancistas, filósofos e ensaístas nos transmitem em suas obras. São como guarda-livros desonestos que fazem o balanço de uma firma, computam só o passivo, esquecem o ativo e declaram a firma falida, irremediavelmente. A vida é dura? É. É trágica? É. Parece absurda? Parece. Bom, e daí? Estamos aqui, não há como fugir, senão pela porta do suicídio. Mas descartado o suicídio (por motivos religiosos, por falta de coragem, etc.), o fato inescapável é que estamos aqui e agora. Pois então amigos, vamos fazer o que melhor que pudermos com uma situação difícil. É a história judaica do Rabequista no Telhado - símbolo da vida. O pobre homem não só tem de se equilibrar direitinho para não cair como também se espera que toque uma música bonita e divertida. Nunca como agora, depois da última viagem à Europa e desta estada nos USA, tive uma sensação mais aguda de caos eminente, de instintos soltos, véspera de apocalipse, etc... Mas a esperança não me desertou. Vejo todos os dias coisas muito positivas ao meu redor. Conservo ainda uma esperança de adolescente, por mais cretino que isso possa parecer. Já estou na situação daquele velho coronel revolucionário de Uruguaiana que, no leito de morte, quando um amigo lhe perguntou como ia, respondeu: "Peleando em retirada e com pouca munição". Pois aos 63 estou já em retirada (portas fecham-se por todos os lados, mas eu abro umas e arrombo outras) e verifico com certa alegria que munição não me falta. Só espero continuar tendo ânimo para gastá-la até o último cartucho. E veja bem, não espero nada depois da morte. Pelo contrário, talvez espere o Nada. Mas mesmo assim não creio que a vida me deva alguma coisa. Ela pode me encarar e perguntar: 'Escuta aqui, velhote, que foi que Eu te prometi? Nada. Quem te fez promessas mentirosas em meu nome foram teus professores, alguns de teus autores prediletos, uma raça inteira de sonhadores que não tinham autorização de falar em meu nome'. E eu respondo: 'Está bem, velhota. Estamos zero a zero. E devo dizer-te que me deste muita coisa boa. E algumas dificuldades, que em geral os outros atribuem à tua má fé, foram causadas pelas minhas deficiências, impertinências, incontinências, fantasias, etc. E devo confessar que te quero bem. Ciao!"

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