quarta-feira, abril 25

Um texto fundador

Hoje à tarde fui procurar um texto de Martha Nussbaum para reler e passar para os alunos. Não achei o que eu queria, me pus a ler outro, da mesma autora, um pequeno-grande trabalho, intitulado "Cultivando a humanidade na educação jurídica", traduzido por Luis Reimer Rieffel, e que me foi alcançado por Ney Silveira Gomes Filho. Lá pelas tantas ela escreve:
“Para estóicos gregos e romanos, todos os seres humanos são fundamentalmente membros de uma ordem mundial, não importando em que pais residam. Esta visão é frequentemente referida como ‘cosmopolitismo’ em virtude do fato de os mesmos sustentarem que cada um de nós é um ‘cidadão do mundo’ (em grego, kosmoupolites). Para pensadores como Cícero, Sêneca e Marco Aurélio, o fato de dividirmos com outras pessoas, em partes distantes do mundo, uma humanidade comum significa que temos para com elas obrigações morais que transcendem o alcance do direito positivo corrente. As idéias desses pensadores tornaram-se a base para o posterior desenvolvimento do direito internacional, especialmente na área da guerra e paz.
Uma vez que os estóicos acreditavam que as pessoas deviam cooperar além de fronteiras nacionais, eles acabaram por ter algumas idéias radicais sobre a educação. Sêneca, um filósofo romano nascido na Espanha e regente do Império Romano durante a juventude de Nero, estava em boa situação para refletir sobre estas questões, pois morava em uma Roma já heterogênea na sua constituição étnica e conectada de maneira complexa a diversas partes do mundo. A epistola moral nº 88 de Seneca, usualmente denominada ‘Carta sobre a educação liberal’ constitui o texto fundador da nossa idéia moderna de educação liberal."
Depois de ler essa passagem fiz uma pequena busca no Google para ver se existe alguma tradução de Sêneca desse texto, a epistola 88. Pois não é que existe uma edição integral, de mais de 700 páginas, das Cartas a Lucilio, publicada em 1991 pela Gulbenkian?
Antes que um desavisado jogue pedras no Sêneca, vai o resto do texto, onde a Martha explica o sentido desse "liberal". (Aliás, na tradução original, o Luis Rieffel opta por traduzir "our modern idea of liberal education" por "nossa idéia moderna de educação geral". Eu é que repus, por minha conta, o "liberal", até porque a Martha, na sequência, esclarece o sentido da expressão:
"Sêneca inicia sua carta, descrevendo o estilo tradicional de educação, salientando que este é chamado de ‘liberal’ (do latim liberalis, ‘conectado à liberdade’) porque o mesmo é concebido de forma a ser uma educação destinada a jovens de boa posição social e de boa criação, que eram chamados de liberales, os que ‘nasceram livres’. Ele proclama, então, que utilizará o termo ‘liberal’ de uma maneira diferente. Na sua perspectiva, uma educação é verdadeiramente ‘liberal’ somente se ‘liberta’ a mente do estudante, encorajando-o a tomar as rédeas de seu próprio pensamento, conduzindo-se pela vida examinada socrática e tornando-se um crítico reflexivo das práticas tradicionais. Sêneca continua seu argumento, asseverando que somente esse tipo de educação desenvolverá a capacidade de cada pessoa para ser completamente humana, significando que esta é possuidora de consciência própria, autocondução e da capacidade de reconhecer e respeitar a humanidade de todos os seus pares seres humanos, não importando onde nasceram, não importando a sua classe social, não importando o seu sexo ou origem étnica. ‘Logo daremos nosso último suspiro’, ele conclui em sua obra relacionada com o tema Da Ira. ‘Entrementes, enquanto vivemos, enquanto estamos entre seres humanos, cultivemos nossa humanidade."

quinta-feira, abril 19

Sobre ensino de Filosofia

No ano passado comecei um blogue para coisas sobre ensino de Filosofia. No meio do caminho surgiu uma pedra e o blogue trancou. Com o início do semestre letivo da UFSM (no final de abril...), sinto a necessidade de ter um espaço para esses temas; vou oferecer uma disciplina complementar para discutir coisas mais operacionais sobre filosofia e currículo e pensei em retomar o blogue; deixei as coisas velhas lá e recomeço. O link está ao lado.

terça-feira, abril 17

Rejane Ramborger


"É com profundo pesar que a Universidade do Oeste de Santa Catarina, Unoesc – Campus de São Miguel do Oeste, comunica o falecimento da Prof. Rejane Justen Ramborger, ocorrido às 06h desta quinta-feira (12/04), em sua residência. Segundo o laudo médico, o motivo foi parada cardiorespiratória. A professora Rejane tinha 36 anos (17/01/1971), era casada e tinha dois filhos. O corpo será velado nesta quinta-feira, das 13h às 14 horas, na Igreja Matriz São Miguel Arcanjo, em São Miguel do Oeste. Logo após, será transladado para São Luiz Gonzaga, no RS, sua cidade natal."
Por vezes é assim, um soco que nos deixa sem ar e sem fala. Foi na quinta-feira da semana passada, fiquei sabendo apenas hoje de tarde, por meio do Frank.
Rejane foi minha aluna no Curso de Filosofia. Quem a conheceu em nosso Curso pôde acompanhar uma rara trajetória de formação e de vida: sua dedicação ao curso somente perdia para o cuidado com Laurinha e Antonio. Rejane era uma ventania em busca, no início tateante e intensa, depois cada vez mais com rumo, sempre com uma gana de recuperar tempo e redefinir rumos de vida. Guardo com muito carinho e cuidado a lembrança de conversas com ela sobre crianças e filosofia e aprendizagem, nas quais, se eu procurava lhe transmitir algo, mais recebia, na forma das histórias de crianças que ela trazia e que discutíamos tardes a fio. Muito do que me motivou a estudar esses temas de ensino de filosofia saiu dessa troca com Rejane.
Ela concluiu a Licenciatura, foi em busca do Mestrado na Educação e, filhos ao lado, saiu em busca do sonho da profissão. Trabalhava na Unoesc, SC, que publicou a nota de falecimento que transcrevi acima.
Uma aluna escreveu coisas muito bonitas sobre ela em um blogue; copiei um trecho: "Uma pessoa maravilhosa, dotada de toda a bondade que uma pessoa pode ter. Alegre, espontânea e principalmente aberta a nós. Uma professora excepcional. Cada aula com ela, uma surpresa, algo inesperado. Tanto foi aprendido com ela, tanto foi vivido."
Eu gostaria de ouvir isso sobre meus alunos - que eles foram capazes de transformar uma aula em uma surprêsa - em outra situação.
Rejane era uma pessoa excepcional e deixou sua marca no mundo de muitas formas, entre as quais a forma como reinventou sua vida e, como diz a aluna, ajudava seus alunos a reinventarem as suas.
Nos vimos faz poucas semanas, quando ela veio a Santa Maria e aproveitou para dar um pulo no Campus e conversar um pouco; pediu minha ajuda para localizar um filme que queria passar para os alunos; ainda não consegui, viu?
Bruta saudade de Dona Rejane!

segunda-feira, abril 16

Raul Sullivan

Em casa nova, Raul Sullivan continua a produzir o melhor site que conheço sobre livros virtuais e toda sorte de assemelhados. E junto com isso vem o maravilho texto que ele escreve sobre toda sorte de coisa. Está excelente o relato que ele faz dos infortunios de um neo-cordobês em busca de uma linha de telefone.

sexta-feira, abril 13

Coloquio da Unisc/Ufrgs

Desde ontem funciona na Unisc (Sta. Cruz do Sul) o Colóquio de Filosofia da Unisc/Ufrgs. Serão dois dias de trabalho, com professores da Ufrgs, doutorandos da mesma universidade, e professores da UNISC e de outras universidades. Distribuímos o material de divulgação aqui na UFSM, mas o período de férias que atravessamos não ajudou muito. Boa sorte aos colegas de Santa Cruz nessa jornada!

"Filosofia e Sociologia no Ensino Medio a partir de 2008"

Deu na ZH de hoje, sexta-feira, treze de abril, página 46.
"A partir de 2008, a oferta das disciplinas de filosofia e sociologia no Ensino Médio será obrigatória nas escolas gaúchas. A medida foi aprovada pelo Conselho Estadual de Educacão do Rio Grande do Sul durante plenária em Santo Antônio da Patrulha."
Até 2012 vale improvisar: os bacharéis em Filosofia e Sociologia, que tenham alguma licenciatura, podem dar aulas; e os licenciados em História e Pedagogia com 120 horas de sociologia ou filosofia no currículo também estão autorizados a lecionar as disciplinas.
Mais um trecho da notícia:
"O CEED determina que, durante os três anos do Ensino Médio, sejam oferecidos dois períodos de cada disciplina distribuídos em qualquer uma das séries".
O Rio Grande do Sul tem 909 escolas estaduais de ensino médio. Destas, 530 oferecem filosofia.
O que eu penso sobre esse retorno é o seguinte: não podemos dizer que a reflexão sobre currículo escolar seja um hábito na comunidade de professores de filosofia. No mais das vezes predomina o que eu chamo de "princípio do presépio"; os professores imaginam-se como reis (magros) que comparecem ao presépio, cada um com seu presente; não faltam as boas intenções, etc. Mas falta a mínima relação entre os presentes... Um currículo não pode ser a mera justaposição de gestos individuais.
Acho que vou fazer duas coisas, lembrando o Tonico Gramsci (otimismo da vontade e pessimismo do intelecto); vou cultivar uma barbicha, para colocá-la devidamente ao molho, e traçar umas linhas sobre currículo e filosofia, sejaoquesócratesinspirar.

domingo, abril 1

Érico Veríssimo e Deus

No dia 10 de Outubro de 1968, em outra carta dirigida a Armindo Trevisan, Érico reflete sobre Deus.
"Se por um lado estou do lado dos que querem ver isso a que se chama realidade sem ilusões e fantasias (o que causa os distúrbios mentais, os traumas, os desencontros, as desgraças do homem adulto são as mentiras que seus avós e pais lhe contaram, as 'notícias' falsas do mundo transmitidas em contos de fadas, fábulas com moral, histórias de heróis), por outro detesto esse ar de fim de mundo que certos poetas, romancistas, filósofos e ensaístas nos transmitem em suas obras. São como guarda-livros desonestos que fazem o balanço de uma firma, computam só o passivo, esquecem o ativo e declaram a firma falida, irremediavelmente. A vida é dura? É. É trágica? É. Parece absurda? Parece. Bom, e daí? Estamos aqui, não há como fugir, senão pela porta do suicídio. Mas descartado o suicídio (por motivos religiosos, por falta de coragem, etc.), o fato inescapável é que estamos aqui e agora. Pois então amigos, vamos fazer o que melhor que pudermos com uma situação difícil. É a história judaica do Rabequista no Telhado - símbolo da vida. O pobre homem não só tem de se equilibrar direitinho para não cair como também se espera que toque uma música bonita e divertida. Nunca como agora, depois da última viagem à Europa e desta estada nos USA, tive uma sensação mais aguda de caos eminente, de instintos soltos, véspera de apocalipse, etc... Mas a esperança não me desertou. Vejo todos os dias coisas muito positivas ao meu redor. Conservo ainda uma esperança de adolescente, por mais cretino que isso possa parecer. Já estou na situação daquele velho coronel revolucionário de Uruguaiana que, no leito de morte, quando um amigo lhe perguntou como ia, respondeu: "Peleando em retirada e com pouca munição". Pois aos 63 estou já em retirada (portas fecham-se por todos os lados, mas eu abro umas e arrombo outras) e verifico com certa alegria que munição não me falta. Só espero continuar tendo ânimo para gastá-la até o último cartucho. E veja bem, não espero nada depois da morte. Pelo contrário, talvez espere o Nada. Mas mesmo assim não creio que a vida me deva alguma coisa. Ela pode me encarar e perguntar: 'Escuta aqui, velhote, que foi que Eu te prometi? Nada. Quem te fez promessas mentirosas em meu nome foram teus professores, alguns de teus autores prediletos, uma raça inteira de sonhadores que não tinham autorização de falar em meu nome'. E eu respondo: 'Está bem, velhota. Estamos zero a zero. E devo dizer-te que me deste muita coisa boa. E algumas dificuldades, que em geral os outros atribuem à tua má fé, foram causadas pelas minhas deficiências, impertinências, incontinências, fantasias, etc. E devo confessar que te quero bem. Ciao!"

Érico Verissimo e a Filosofia

Em uma carta datada do dia 15 de Julho de 1968, Érico Veríssimo relatava a Armindo Trevisan as suas leituras:
"Tenho aqui na minha frente alguns dos livros que estou lendo simultaneamente, ou melhor alternadamente. Essais Critiques de Roland Barthes, que considero um dos mais lúcidos críticos da atualidade. One-Dimensional Man, de Herbert Marcuse, o filósofo da rebeldia estudantil. Défense de la Littérature, de Claude Roy. Éloge de la Philosophie, de Merleau-Ponty. Précis de Décomposition, de E. M. Cioran. Além disso, leio aos poucos os Diários e as Cartas de Harold Nicolson, escritor parlamentar inglês. O que me impressiona nestas confissões é principalmente o fato de seu autor ser essa coisa rara: um bom homem."
O que me impressiona nesse trecho de carta é o gosto de Érico Veríssimo pela filosofia: em 1968 não seria de estranhar que estivesse lendo Marcuse que, como ele diz, estava na moda; mas ele lia Merleau-Ponty e Cioran, caramba! Para não falar do Barthes, que tinha um pé na cozinha filosófica.