Thoreau e as armas
Thoreau escreve sobre armas, caçadas e pescarias no capítulo intitulado Leis Superiores, em Walden. Não sei de nenhum outro pensador que tenha escrito sobre essas coisas. E qual escritor teria dito uma frase assustadora como essa: “Não podemos deixar de ter pena do garoto que nunca disparou um revólver; ele não se tornou mais humano, ao passo que sua educação foi tristemente negligenciada”.
Eu deveria deixar esse assunto assim mesmo, para que o leitor se sentisse provocado a entender como é que um romântico e trancendentalista como Thoreau pode dar sentido a uma frase como essa. Mas vamos votar sobre armas nesta semana e vou abrir meu voto, pelo sim, no contexto da reflexão à margem do lago Walden.
A frase de Henry Thoreau (1817-1862) foi escrita num mundo um tanto diferente do nosso, em muitos sentidos: ainda havia muita natureza intocada, nenhuma grande guerra, um certo otimismo ainda era possível de ser nutrido; caçar e pescar faziam parte dos divertimentos “mais primitivos e solitários”; “na minha geração quase todo garoto da Nova Inglaterra, entre os dez e os quatorze anos, carregou às costas uma espingarda”. Mas, diz ele, se o convívio com as armas pode fazer parte de nossa educação, abandonar as armas de fogo também está no nosso caminho “para a vida espiritual”. Somos dois, sempre, queremos de um lado “agarrar a vida cruamente e passar o dia ao jeito dos animais”, mas também temos “um instinto voltado para as coisas elevadas”. Ao recomendar que os garotos experimentem as armas, Thoreau acrescenta, no mesmo parágrafo: eu confio que eles vão superar isso, “nenhum ser humano, passada a fase de estouvamento da infância, irá irresponsavelmente assassinar qualquer criatura, que valoriza a vida pelo mesmo título de posse que ele. A lebre em sua hora extrema chora que nem uma criancinha.”
“Ando disposto a abandonar a arma de fogo”, diz ele, e disso se segue, entre outras coisas, uma reflexão sobre nossos hábitos alimentares: “Quaisquer que sejam minhas práticas de alimentação, estou convicto de que faz parte do destino da raça humana, em seu progresso gradual, abandonar o hábito de comer animais, do mesmo modo que as tribos selvagens abandonaram a antropofagia ao entrarem em contato com os mais civilizados”.
Quaisquer que sejam as nossas práticas de convivência e de alimentação, precisamos pensar em que tipo de mundo queremos conviver; podemos votar para continuar a caminhada para adiante da antropofagia; ou em voltar um pouco para ela.
(Usei a tradução de Astrid Cabral: Henry D. Thoreau. Walden ou a Vida nos Bosques e a A Desobediência Civil. Editora Aquariana, São Paulo, 2001. A caricatura de Thoreau é de David Levine)
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