sábado, março 1

Sociologia de lambreta


Viajar de lambreta pode ser uma pequena prática espiritual; são horas e horas sentado na mesma posição, sem poder mover-se quase nada, sem poder tirar por mais que segundos os olhos de um certo ponto adiante, na estrada; e manter, por mais tempo possível, o mesmo ritmo de deslocamento, atento aos sinais de todo tipo; com chuva, tudo se multiplica: os pequenos riscos na estrada aumentam e a chance de olhar para os lados diminui; a mão amortece, a bunda dói, os joelhos trancam mas é preciso seguir.
Viajar de lambreta no Uruguai é um convite para fazer sociologia de banquinho, coisa pouco nociva em férias.
Che Guevara batizou de La Poderosa sua Norton 500, que ia mal das pernas e apitou em algum ponto do sul do Chile.
Era La Flaquita, en verdad.
La Poderosa, o haras, pode ser uma ironia, lembra Dr. Valério. Acho que sim.
Minha flaquita ia entrando em Melo, seguindo um tramo do Gran Premio del Uruguay 19 Capitales.
Deixa explicar.
Estava eu esperando a chuva passar, em um posto de gasolina na entrada de Lascano, logo adiante de Rocha, quando o frentista comentou que logo ia passar um rali com mais de cem carros, com destino a Rivera.
Sorte, pensei.
Se tem uma coisa que incomoda quando a gente viaja sozinho de lambreta é ter pouca capacidade de realização espiritual. Isso significa: o gauchinho fica solito com seus pensamentos, sem nada para distrair, musica, tevê, só aquela imensa paisagem pela frente, emptiness, dizem alguns. Acho que por isso os motociclistas andam em bandos, como gusanos, esperando virar crisálidas e borboletas em algum lugar; ficam olhando a roda traseira do outro, admirando as lambretas alheias, fazendo micagens, brincando de seguir o líder passam o tempo e o espaço.
Nem Che Guevara viajou sozinho de moto.
Sorte, pensei.
Entro nesse rali.
Entrei. Com chuva e tudo, passaram os carros e me fui junto, colado num Gordini verde, que mal podia passar de oitenta e cinco. Cansei e fui em frente, colei no Mini Morris do Jorge Sanguinetti - ele mesmo, o irmão do ex-presidente, dirigente da poderosa estatal Ancap - e fui seguindo, dois decavês um Saab dois tempos também, um Cinquecento que fazia mais barulho que velocidade e fui indo na lambreta
Parava e deixava todo mundo me passar.
E tudo de novo.
Uma das diversões era ver o povo esperando, dentro de automóveis, na beira da estrada, para ver o tal do rally passar.
Entrando em Melo - foram setecentos quilometros de chuva - havia esse Vanguard Standard da foto aí encima.
Passei direto.
Depois freei a lambreta e pensei em todas as fotos que me arrependi de não ter parado e tirado. Metáforas da vida, por certo, pensei. A gente vai passando, vê a cena, coisa mais linda, pensa na foto mais linda ainda que poderia tirar, e vai em frente, com pressa, e não volta para tirar a foto. São aqueles poucos segundos, tira o pé - ou mão - do acelerador, pára, volta, faz a foto. Ou então ficamos pensando e penando e vamos em frente. E ficamos pensando que foto bonita poderíamos ter tirado. Quantas fotos bonitas perdemos, a gente fica pensando e penando.
Voltei. Ando solito, não atrapalho ninguém, pensei. Voltar, sempre que quiser, poderia ser um exercício espiritual, de tentar não perder nenhuma foto. Pensou, parou. Se não der foto boa, o aprendizado com a delusão é bem provável.
Muitas fotos a gente tira com a mente. Ficam com a gente para sempre, mas fica a sensação de ter perdido o momento e a chance de repartir.
Parei e voltei, estacionei a lambreta, fui até o carro e pedi licença para tirar umas fotos. E perguntei que carro era aquele. Eu me dirigi ao lado esquerdo do carro e ali havia uma senhora. O dono e motorista estava do lado direito do carro - onde ficava a direção - com uma criança no colo. Era um carro inglês, um Standard Vanguard de 1947, disse o dono. Sim, já tinha recebido propostas de venda, mas nenhuma razoável. Afinal, o carro, diz ele, está impecable.
Concordei com o dono. Estava impecable o Vanguard.
Toda a família estava ali dentro do Standard, esperando passar o Tramo B do Gran Premio del Uruguay 19 Capitales, que ia de Maldonado a Rivera. Ficaram horas por ali, protegidos da chuva, para ver passar os Cinquecento e demais.
Reparei no jeito que o menino na janela traseira do carro me olhava e me bateu uma tristeza.
Chovia muito.
Subi na lambreta e fui embora para Rivera. Depois daquele Standard o ralli começou a perder a graça.

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